Título: Veto ao contrabando em Mps
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/06/2009, Notas & Informações, p. A3

Nos dias que correm, não sobram razões para aplaudir os dirigentes do Congresso Nacional. Mas faça-se justiça ao presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), por uma decisão que acaba de tomar - já não sem tempo. Na semana passada, o líder do DEM na Casa, Ronaldo Caiado, havia denunciado uma emenda de iniciativa da bancada do PTB à Medida Provisória (MP) nº 460, que desonera materiais utilizados na construção de habitações do programa Minha Casa, Minha Vida. A emenda acrescentou ao texto original a criação de 284 cargos na Superintendência de Seguros Privados (Susep). Ainda assim, a Câmara aprovou a MP, incluindo o "contrabando".

No jargão parlamentar, o termo designa os artigos adicionados sub-repticiamente durante a tramitação de projetos de lei referentes a assuntos que guardam escassa ou nenhuma conexão com o enxerto. A esperteza visa a atender a interesses de toda ordem que, por terem duvidosa legitimidade, ou serem francamente imorais, talvez não pudessem ser satisfeitos às claras. A prática não é desconhecida em outros países. No Brasil, não só é rotineira, mas levada a cabo muitas vezes com requintes de técnica legislativa para não deixar marcas. Faz lembrar, por isso, o amargo comentário do chanceler prussiano Bismarck. "Ah", dizia ele, "se o povo apenas soubesse como são feitas as leis e as salsichas!"

Depois do caso Susep, Michel Temer resolveu expurgar das MPs os contrabandos acrescentados por seus pares, não raro com a anuência ou o incentivo do governo. As medidas provisórias são a modalidade de proposta legislativa preferida pelos contrabandistas, porque, dado o rito acelerado de sua tramitação, não passam pelas comissões permanentes do Congresso, como ocorre com os projetos normais. Em tese, o golpe poderia ser barrado quando a MP fosse examinada previamente pelas comissões mistas de deputados e senadores previstas para esse fim. Mas, quando se fazem as leis no Brasil, as comissões simplesmente não se reúnem (o que, de resto, abre caminho para a proliferação de MPs sem urgência nem relevância).

Cabe então ao presidente da Câmara - a Casa por onde começam a tramitar as MPs - filtrar as emendas antes de colocar as propostas na ordem do dia. Na realidade, uma lei complementar de 1998 e as regras para as medidas provisórias adotadas em 2002 vedam, cada qual a seu modo, a adição de corpos estranhos ao objeto de uma propositura. Mas, pelos motivos acima citados, a dupla proibição é solenemente ignorada. A liberdade de ação do presidente da Câmara, no caso, é relativa. Ele não tem a prerrogativa de rejeitar MPs que já tratem de uma variedade de temas - o contrabando também corre solto nos projetos elaborados no Planalto. E as emendas que tiver recusado poderão ser restabelecidas em plenário ou ainda ganhar vida nova no Senado, se o seu presidente as tolerar. Aprovadas ali, poderão ser endossadas pela Câmara, quando apreciar as novas alterações à proposta.

Apesar disso, é mais um passo na direção certa. Em março último, Temer teve a boa ideia de reinterpretar a emenda constitucional de 2001 que determina o trancamento da pauta de deliberações do Congresso sempre que uma medida provisória não tenha sido votada em 45 dias. Ele limitou a trava a projetos de lei ordinária, sob o argumento de que só a ela as MPs se equiparam. Agora, é de desejar que a tentativa de pôr cobro à farra das emendas impeça ao menos as piores manifestações do escândalo. O rol de exemplos nesse sentido espantaria o próprio Bismarck. Basta um. Na versão aprovada, a MP nº 350, que trata do Programa de Arrendamento Residencial, passou a conter um dispositivo maroto que transformou em "aviso" a advertência do Ministério da Saúde nas embalagens de leite sobre as restrições ao consumo do produto por crianças de até 1 ano.

"Se fosse apresentar projeto de lei, demoraria muito", justificou-se o autor da proeza, o deputado (e pecuarista) João Magalhães (PMDB-MG), membro da suprapartidária bancada do leite, citado pelo jornal Valor. A erosão da "capacidade criadora do Legislativo", como diz Temer, chegou a tal ponto que só os neófitos ou ingênuos ainda se dão ao trabalho de apresentar projetos. O contrabando é o atalho perfeito - com a vantagem de passar despercebido pela opinião pública.