Título: Internações ocorrem sem controle
Autor: Leite,Fabiane
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/06/2009, Vida, p. A24

Ao contrário do que prevê a lei, Estados têm sistemas precários para acompanhar hospitalização psiquiátrica

Fabiane Leite

Oito anos de reforma da assistência a doentes mentais no País não garantiram uma fiscalização adequada das internações psiquiátricas involuntárias, que ocorrem contra a vontade do paciente. Isso porque não há comissões para fiscalizar a necessidade das internações, como prevê a legislação.

Só na capital paulista, uma média de 14 pessoas foram internadas diariamente em hospitais psiquiátricos contra a própria vontade em 2008, um total de 5.055 indivíduos, segundo dados inéditos do Ministério Público do Estado. As comunicações foram feitas à instituição de acordo com o preconizado pela Lei 10.216. Ela determinou, a partir de 2001, que as internações deveriam ser o último recurso terapêutico e que, se não houvesse consentimento do doente, deveriam ser levadas às promotorias em 72 horas.

No entanto, apesar do esforço, o sistema de comunicação via internet só funciona na capital - no restante do Estado, é feito por papel. Também não existe, como previsto em portaria de 2002, uma comissão externa de médicos e outros profissionais para revisar as internações após sete dias, o que deveria ser implantado pelo governo estadual, com a possibilidade de participação de usuários dos hospitais psiquiátricos.

Além disso, em grande parte das vezes, não há dados específicos do diagnóstico. "Os promotores trabalham só mediante denúncia", reconhece o promotor Reynaldo Mapelli, responsável pela área de saúde do Centro de Apoio Operacional Cível.

O próprio Censo Psicossocial dos Moradores em Hospitais Psiquiátricos - que levou em conta aqueles que estão há pelo menos um ano internados - alerta que 77% das internações de 6.349 pacientes foram involuntárias. O trabalho inédito, realizado pela Secretaria da Saúde de São Paulo, será apresentado nesta semana. Entre as suas recomendações reconhece a necessidade de criação da comissão revisora, além de todas as ações necessárias para acabar com pacientes moradores, situação que contraria a lei, pela qual instituições asilares são proibidas.

São Paulo não realizou a última avaliação dos hospitais psiquiátricos do Ministério da Saúde, o que ajudaria a ter um quadro mais atualizado sobre a qualidade da assistência. A secretaria informou que participará da próxima avaliação e que já discute implantar a comissão.

OUTROS CASOS

A precariedade na fiscalização não é exclusividade paulista. "Aqui a comissão está instalada, mas não tem uma regularidade que eu possa dizer que seja a contento", admite o gerente de saúde mental do Estado do Rio de Janeiro, Marcos Gago, onde só a capital tem cerca de 2 mil internações involuntárias por ano e o Estado, 3 mil pacientes moradores.

As comunicações chegam todas por papel ao Ministério Público fluminense. "O MP não consegue lidar com tantas informações. A questão da reforma não é acabar com as internações, mas dar qualidade a tudo isso", diz Gago. O Estado estuda criar comissões regionais.

Paulo Amarante, responsável pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Fundação Oswaldo Cruz, explica que o controle das internações foi o meio de tentar garantir o direito à cidadania dos doentes. "Uma pessoa recolhida assim não tem visibilidade social e há risco de a internação ser feita por uma herança, por uma briga de casal", diz.

Amarante acrescenta, no entanto, que não só as internações involuntárias como as voluntárias - que pela lei têm de ter termo de livre consentimento do paciente - deveriam ser fiscalizadas. "É muito nebuloso. Hospitais registram como voluntária para não ter burocracia."

O especialista explica que, como a lei não definiu qual seria o papel do Ministério Público na fiscalização, há uma diversidade de entendimentos. Em Pernambuco, por exemplo, o MP tem a prática de efetivamente visitar uma amostra das pessoas internadas para verificar a real necessidade da hospitalização - hoje sabe-se que, com os remédios existentes, longas internações não são necessárias. Outras promotorias trabalham por meio de denúncia.

Sérgio Tamai, responsável pela área de saúde mental da Federação de Hospitais do Estado de São Paulo, diz acreditar que a fiscalização é de difícil implementação por causa do volume de internações. "É difícil traduzir isso em ações em São Paulo, por exemplo." Afirma ainda que os abusos não ocorrem com frequência. "Isso é ficção, coisa de novela", defende.

DENÚNCIA

O Ministério Público paulista só descobriu que uma clínica para dependentes de drogas em Embu Guaçu (a 47 km de São Paulo) fazia internações ilegais após receber relatórios da Vigilância Sanitária e depois de familiares fazerem denúncias. O local não tinha médico responsável, havia prontuários em branco, alimentos estragados, ratos e correntes nas portas. As internações involuntárias não eram registradas.

Um dos donos da clínica, o ex-cantor Rafael Ilha Pereira, é investigado por suposto homicídio de um paciente que teria tentado levar à força para o hospital. Além disso, Ilha teria tentado levar à força uma mulher supostamente usuária de drogas, que disse à polícia ter sido o ex-marido que pediu que ela fosse internada, por vingança. "Não tínhamos conhecimento do que ocorria", diz a promotora Maria Gabriela Manssur. A clínica foi fechada recentemente e repassada a um terceiro. Ilha não foi localizado.

O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO

Tratamento: Determina que é direito da pessoa com doença mental ser tratada em serviços comunitários, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs)

Internações: Só podem ocorrer quando os serviços comunitários forem insuficientes. As involuntárias devem ser informadas à promotoria e depois avaliadas

Permanência: foram vetadas as internações de longa permanência em instituições de caráter asilar