Título: Alemão comprou área de guerrilha
Autor: Nossa, Leonencio
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/06/2009, Nacional, p. A12

Local de movimento armado dos anos 70 é hoje o retrato da pobreza, ausência do poder público e grilagem

Leonencio Nossa

O Vale do Gameleira, na Serra das Andorinhas, dominado no começo dos anos 70 pelos guerrilheiros do Araguaia, virou um latifúndio de propriedade de um empresário alemão. "Gringo", como o estrangeiro é conhecido na Amazônia, está comprando os sítios de camponeses que sobreviveram aos combates entre comunistas e militares (1972-1975). O primeiro pedaço de terra que ele comprou, em 2001, hoje sede de uma de suas fazendas, pertenceu a Osvaldo Orlando Costa, o comandante guerrilheiro Osvaldão.

O cenário de um dos capítulos sangrentos do passado brasileiro é hoje o retrato da Amazônia das compras estranhas de terra, da pobreza, da ausência do poder público e da agressão ao meio ambiente e aos ribeirinhos e sitiantes tradicionais.

A Agropecuária Andorinhas Ltda. tem como sócio majoritário a Lemarey Sociedad (99,7%), uma empresa que, pelos cadastros brasileiros, é uma offshore com sede no Uruguai.

PISCINA NATURAL

O córrego Gameleirinha foi represado e serve agora de piscina natural na fazenda. O empresário construiu uma pequena praia. A casa de Osvaldão foi destruída pelo Exército ainda em 1972. Uma mata voltou a crescer no lugar.

Um dos tiroteios travados entre guerrilheiros e militares ocorreu bem próximo à mansão da sede da Andorinhas 2. Hoje o lugar, mais abaixo da piscina, é uma área limpa. Um funcionário da fazenda, que pediu para não ser identificado, conta que presenciou a batalha. Ele lembra que os militares, logo após descobrirem o refúgio de Osvaldão, retiraram todos os camponeses que moravam nas terras hoje ocupadas por "Gringo" e destruíram roças e casas.

Raimundo Nonato da Silva, hoje morador do vilarejo de Santa Cruz, foi um dos que tiveram de fugir. Ele disse que possuía dez alqueires de terra. Perdeu criação de galinhas e porcos e plantações de mamão, banana e mandioca. "Nunca apanhei, só fui humilhado", conta. "Eles arrancaram todos os pés de mandioca para os guerrilheiros morrerem de fome na mata."

Sem moradores, as partes mais elevadas da Serra das Andorinhas viraram lugares ideais para a indústria da grilagem de terras no Pará nas últimas décadas. A meta do empresário alemão agora, dizem moradores, é comprar as terras de Manoel Calado, vizinho dele.

Uma das últimas áreas de vegetação nativa no sul do Pará, a Serra das Andorinhas ainda conserva cachoeiras, paredões, veredas, campos de cerrado e trechos de selva que aos poucos vão dando lugar a pastagens, cavas de garimpo clandestino e áreas de mineração sem estudos de impacto ambiental. Funcionários da Vale fazem há anos pesquisas para dimensionar o potencial das pedras e dos minérios dos morros onde os guerrilheiros Paulo Roberto Pereira Márques, o Amaury, e José Huberto Bronca, o Fogoió, fizeram suas trincheiras.

"GRINGO"

O "Gringo" aparece pouco na região. Sempre com ajuda de um intérprete, ele diz, segundo os moradores ouvidos pelo Estado, que as fazendas Andorinhas 1 e 2 são apenas para descanso e lazer da família. Mas ela também aparece cadastrada em áreas de pesquisa genética bovina da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O comerciante Ananias Amarante diz que "Gringo" já possui cerca de 3 mil alqueires de terras, que vão do Araguaia até a parte elevada da Serra das Andorinhas. São tantas terras que parte delas está no município de São Geraldo e outra em Palestina do Pará.

As fazendas são bem vigiadas. Nas últimas semanas, com a presença na região de técnicos que trabalham nos estudos geológicos das obras da hidrelétrica de Santa Isabel, ficou mais fácil conseguir as chaves das porteiras das propriedades com um capataz. O lago da usina poderá inundar terras compradas pelo empresário.

A primeira fazenda é cortada pelo córrego Couro Dantas, onde em maio de 1972 os guerrilheiros mataram o cabo Odílio Rosa, acirrando os ânimos com os militares. O Exército, que costuma homenagear seus heróis, não colocou placa nas margens do igarapé que servem de pasto para uma criação de vacas nelore e holandesas.

Da sede da fazenda Andorinhas 1 à da Andorinhas 2 são 20 quilômetros de estrada. Com o acúmulo de terras, os moradores só podem percorrer a via com autorização. O lugar onde os comunistas queriam fundar um Estado independente, segundo a versão militar da guerrilha, tem hoje sua principal estrada controlada pelos homens contratados por "Gringo" - ninguém, na região, nos dois dias em que a reportagem esteve no local, forneceu a identificação do proprietário alemão. As propriedades são bem cuidadas, com cercas e porteiras pintadas. Uma boa parte da vegetação nativa foi desmatada. Foram preservadas, porém, as matas ciliares do Rio Gameleira, o principal da região.