Título: O taumaturgo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/07/2009, Espaço Aberto, p. A2
As relações entre o senador Epitácio Cafeteira e o presidente do Senado, José Sarney, foram, ao longo do tempo, de amizade e inimizade. Em 1962 Cafeteira foi eleito deputado federal pela UDN, então partido de Sarney. Já no regime militar, Sarney veio a ser governador do Maranhão e nomeou Cafeteira prefeito da capital, São Luís.
Em 1974 Cafeteira passou para o MDB, chegando a presidir o diretório maranhense do partido. Com a passagem de Sarney, presidente do PDS, partido do governo militar, para o PMDB, e indicado por injunções jurídicas para compor a chapa com Tancredo Neves, Sarney e Cafeteira se reconciliaram. Em 1986 Cafeteira foi eleito governador do Estado do Maranhão.
Em 1994 surgiu uma disputa entre ambos: Cafeteira disputou o governo do Estado com Roseana, filha de Sarney, e foi vencido. Novo insucesso se deu em 1998, quando Roseana foi reeleita no primeiro turno contra Cafeteira, então integrando os quadros do PPB. Em 2002 Cafeteira, ainda na condição de adversário de Sarney, disputou uma cadeira no Senado, para ser outra vez derrotado.
Em 2006 realizou-se, por conta de Fernando Sarney, filho do ex-presidente, a reconciliação: uniram-se novamente Sarney e Cafeteira, tendo este dado apoio ao clã Sarney por meio do PTB, seu novo partido. Aí, sim, Cafeteira, perdedor duas vezes como candidato ao governo do Estado e sem mandato, pois vencido na disputa para o Senado em 2002, viu novamente sua consagração nas urnas, sendo eleito senador.
Grato pela aproximação com Sarney, industriada por seu filho Fernando, condição essencial para a vitória eleitoral, o senador Cafeteira nomeou, em fevereiro de 2007, como seu assessor, João Fernando, filho de Fernando Sarney com Rosângela Terezinha Michels Gonçalves, candidata a Miss Brasília 1980, sua ex-namorada. Em outubro de 2008 o rapaz foi exonerado, por meio de decreto secreto, em cumprimento à decisão contrária ao nepotismo imposta pelo Supremo Tribunal Federal. No lugar do neto de Sarney foi nomeada sua mãe, Rosângela.
Cafeteira, indagado acerca da nomeação do neto de Sarney, justificou que era muito grato ao pai dele, Fernando, pela reconciliação promovida com o velho Sarney, razão pela qual o presenteara com um carguinho pago pela folha do Senado. Era justo!!! O Supremo tentou impedir a sinecura e secretamente o neto de Sarney foi exonerado, mas em compensação nomeou-se sua mãe. Era justo!!! Dívida deve-se pagar, ainda mais dívida de gratidão.
Desde 2003 Amaury de Jesus Machado, alcunhado como Secreta, prestou serviços na casa da então senadora Roseana Sarney - um agregado da família, pau para toda obra. A agora governadora do Maranhão justificou esse desvio de função de forma comovente: "Ele é meu afilhado. Fui eu que o trouxe do Maranhão. Ele vai à casa quando preciso, uma ou duas vezes por semana. É motorista noturno e é do Senado. E lá até ganha bem."
Segundo notícia publicada pelo Estado em 20/6, o Secreta cuida dos serviços de copa e cozinha, distribui ordens aos funcionários e organiza recepções. Ganha R$ 12 mil por mês, o que se justifica por ser afilhado de Roseana, segundo ela mesma explicou tão claramente. É justo!!!
A República brasileira vive, desde seu nascedouro, à custa da compra de fidelidades. São afilhados, parentes, agregados, todos beneficiados com um cargo na administração, pois dessa forma não apenas se dá um sustento sem trabalho a apaniguados, mas se adquire definitivamente sua lealdade como correligionários a toda prova: cabos eleitorais seguros nas futuras eleições. Demonstra-se, assim, a todos que se possui poder.
O importante é ter a caneta que nomeia, pois se viabiliza saldar o passado ao pagar as dívidas com dinheiro público e garantir o futuro pela obtenção de apoios de cupinchas esperançados, seguros no cumprimento de promessa de uma sinecura qualquer.
José Murilo de Carvalho relata que metade dos papéis arquivados da gestão de Rui Barbosa como ministro da Fazenda, no governo de Deodoro da Fonseca, dizia respeito a pedidos de emprego, alguns formulados por pessoas dotadas de poder, como a própria esposa do presidente marechal proclamador da República.
Aos 120 anos de República consolida-se o apadrinhamento, ao se institucionalizar o reconhecimento de sua validade pela palavra do presidente da República, para quem Sarney "não é uma pessoa comum" e sua história o isenta de responsabilidades, em vista do que as denúncias de nepotismo merecem ser tratadas com benevolência.
Une-se agora a categoria do favor, denunciada por Roberto Schwartz, com o providencialismo estatal: clientelismo e salvacionismo lulista. Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, menciona a figura do pai do povo que guarda dos infortúnios e confunde o político com o taumaturgo. Hoje, o presidente Lula perdoa as culpas dos amigos e das pessoas "não comuns" e, ao mesmo tempo, assegura a salvação ante todos os perigos: transforma a crise mundial em "marolinha", garante a não-disseminação da gripe suína, reduz a crise iraniana a confronto entre flamenguistas e vascaínos.
Da combinação entre o passado e o presente surge o novo taumaturgo que exorciza os males e passa a mão milagrosa na cabeça dos culpados: absolve mensaleiros, ungindo-os com a bênção presidencial, bem como os "aloprados" de 2006, produtores de dossiês falsos.
Neste instante, perdoa o mais ferrenho adversário do passado, e esse mesmo passado, tantas vezes condenado, vale para redimir as culpas de Sarney, cuja "história no Brasil é suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum".
O taumaturgo demagogo domina o espetáculo. Por ser o salvador de um povo crédulo, pode desprezar a ética e a verdade e consagrar, com a liturgia do cargo, os piores vícios do Brasil.
Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça |