Título: Havia fundamento para liquidar o fundo e sequestrar o gado?
Autor: Macedo,Fausto ; Almeida,Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/07/2009, Nacional, p. A8

SIM: Marcello Enes Figueira e Valéria Caldi Magalhães*

Desde pelo menos 1941, ano da promulgação do Código de Processo Penal Brasileiro, nossa legislação prevê expressamente a possibilidade de o juiz criminal decretar o sequestro e a perda de bens adquiridos com a prática criminosa.

A perda, preservados sempre os direitos de terceiros de boa-fé, ocorre após o julgamento definitivo da ação criminal (trânsito em julgado). Já o sequestro - verdadeira imobilização do patrimônio suspeito - visa a evitar que, durante o demorado trâmite do processo, os bens adquiridos ilicitamente sejam dilapidados pelo réu. O que o juiz busca, nesses casos, é simplesmente preservar aquele patrimônio que, muito provavelmente, não pertence legitimamente ao réu ou ao terceiro que o possui. Os bens passam, assim, à administração da Justiça até que haja decisão definitiva sobre sua origem e titularidade.

A própria finalidade do sequestro justifica a sua urgência: acaso não adotada a medida cautelarmente, ou seja o mais rápido possível, a probabilidade de o legítimo titular dos bens ou a própria sociedade serem definitivamente lesados passa a ser enorme. Não se pode esperar a colaboração voluntária do réu para devolução do "seu" patrimônio ao Estado ou à vítima do crime por ele praticado. Não é por outra razão que o direito brasileiro contenta-se, há quase sete décadas, com a existência de "indícios veementes da proveniência ilícita dos bens" para a decretação do sequestro.

Não bastasse isso, não é possível ignorar que dos anos quarenta para cá muita coisa mudou... Vivemos os tempos da "globalização". Ativos financeiros circulam quase ficticiamente pelo globo terrestre através de comandos em um computador. E a engenharia financeira que se presta à potencialização dos ganhos não costuma fazer diferença entre os que tem e os que não tem origem lícita.

Nesse contexto, organismos internacionais são praticamente unânimes em afirmar a absoluta necessidade das medidas de constrição de patrimônio suspeito para garantir a eficácia do processo e do próprio combate a este câncer sociológico. O direito brasileiro felizmente incorporou esta orientação, expressamente, através da Lei n.º 9.613/98.

Enfim, se em 1941 já era absolutamente natural e socialmente útil conferir ao juiz criminal competência para preservar o patrimônio público e de terceiros de boa-fé, hoje pode-se dizer que esta competência é, mais do que simplesmente útil, indispensável para a sociedade.

* Juízes federais e integrantes da Comissão de Direito Processual Penal da Ajufe

NÃO: Antonio Sergio A. De Moraes Pitombo **

O espírito novidadeiro faz mal ao profissional do direito. Na atualidade, deve-se reconhecer, há mais problemas inusitados a serem dirimidos pelo Judiciário, mas isso não significa que se devam encarar os institutos jurídicos com a visão de "admirável mundo novo".

Essa perspectiva de querer sempre inovar, muitas vezes, faz com que o juiz de direito esqueça regras construídas com esforço de aprimoramento de séculos pelos juristas.

Uma regra básica, que vem sendo posta de lado, é a da vinculação estrita do magistrado aos fatos sob julgamento (Dá-me o fato, dar-te-ei o Direito). Curiosamente, decisões recentes têm sido embasadas em teorias, conjecturas, experiência estrangeira, qualquer motivo, menos nos objetivos acontecimentos que se encontram descritos nos autos.

Na alienação antecipada de bem, objeto de medida assecuratória no processo penal, tem-se a perfeita medida do quanto algo, que possui história no processo civil, pode ser tratado de forma a ferir os mais básicos direitos individuais, como o direito à defesa e ao devido processo legal, antes da privação da propriedade (art. 5º, LIV e LV, da Const. da Rep.).

A engenhosidade dos "modernos" chama atenção pelo uso indevido de analogias e interpretações extensivas para empregar dispositivos legais. Ao invés da letra da lei, há quem prefira escapar da regra estrita, para englobar situações diversas da previsão legal.

Também esta a circunstância quanto à aplicação da alienação antecipada de bens, sequestrados em procedimento penal. A norma jurídica se apresenta clara, limitando a antecipação ao requisito de serem tais bens "coisas facilmente deterioráveis" (art. 120, par. 5º, do Cód. de Proc. Penal). Logo, a única chance de se querer liquidar um fundo de investimento, sob essa desculpa, é confundir condomínio com coisa, ou misturar variação de cotação com depreciação.

O maior perigo para o cidadão, talvez, esteja nesse ponto, porque a vontade de inovar não vem acompanhada da intenção de conhecer, de verdade, o objeto de perquirição.

Infelizmente, questões judiciais, atinentes ao mercado financeiro, acabam sendo tratadas na Justiça Penal, com preconceito e desconhecimento sobre as operações. Daí o absurdo paradoxo de se criarem riscos econômicos ao próprio sistema financeiro, a contar de decisão criminal em descompasso com a realidade e com o próprio Direito.

** Advogado, mestre e doutor em direito penal na Universidade de São Paulo