Título: A degringolada do Senado
Autor: Reale Júnior, Miguel
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/08/2009, Espaço Aberto, p. A2
Sempre houve ao longo de nossa História o confronto entre o poder central e o poder local. No plano institucional e das finanças públicas prevaleceu, durante a colônia e o Império, o poder central, que nomeava os governadores de província, arrecadava receitas e geria a distância a administração estadual.
Contudo o poder real, exercido no cotidiano, encontrava sua fonte na pessoa dos chefes municipais, os grandes eleitores dos vereadores, aos quais cumpria indicar no Brasil colônia o capitão-mor encarregado de impor e zelar pela ordem pública. Durante o Império o governador da província nomeava os delegados de polícia e os promotores públicos, mas com forte influência dos líderes locais dos Partidos Liberal ou Conservador, que se revezavam no poder central.
No plano da realidade política e social, o chefe local era o centro absoluto do poder, em confronto com o centralismo do Estado unitário, que arrecadava e tinha exclusivamente os meios para a ação administrativa. Por isso se reclamavam autonomia e receitas para as províncias.
Por conta desse cenário, o federalismo tornou-se um dos lemas da campanha republicana. O Império não teria sido varrido de uma penada se tivesse o imperador tido a sensibilidade de ouvir os reclamos federalistas e atendido à exigência de autonomia às províncias.
Rui Barbosa, que sempre se declarara monarquista e defendia uma monarquia constitucional numa forma de governo federativa, aderiu no último momento à República em vista do ideário federativo. Em Cartas de Inglaterra dizia ele que se afastara do Partido Liberal não como republicano, mas como federalista, pois era federalista antes de ser republicano. Só se fez republicano quando a "evidência irrefragável dos acontecimentos" o convenceu de que "a monarquia se incrustara irredutivelmente na resistência à federação".
Com efeito, declarada a República, editava-se o Decreto nº 1, cujo artigo 1º estabelecia: "Fica proclamada provisoriamente e decretada como forma de governo da nação brasileira - a República federativa."
O projeto de Constituição, enviado pelo governo, com base em trabalho de cinco juristas e depois submetido ao crivo de Rui Barbosa, no seu artigo inicial repetia: "A nação brasileira adota como forma de governo, sob o regime representativo, a República federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brasil."
Como assinala o principal comentarista da Constituição de 1891, João Barbalho, organizou-se o regime político dividindo o anterior Estado unitário em Estados particulares, dando às antigas províncias este caráter de serem responsáveis por seu próprio governo e sua administração, porém reunidos de forma indissolúvel e perpétua sob a denominação de Estados Unidos. Nas Disposições Transitórias da Constituição de 1891, afirmava-se terem os Estados existência autônoma, com seus governos separados quanto ao regime de sua vida local, mas serem do Brasil, da mesma una e grande pátria.
Se a Câmara dos Deputados se compõe de representantes do povo em proporção, em cada Estado, ao número de habitantes, era preciso, como se ressaltara na formação do Estado norte-americano, que houvesse uma Casa congressual, o Senado, em que se garantisse a igualdade entre os Estados. Tão importante era na América do Norte a igualdade entre os Estados que, em caso de vacância, o governador do Estado podia nomear provisoriamente um senador para assegurar essa igualdade.
Assim nasce o Senado, composto por três representantes de cada Estado, como consequência obrigatória da forma federativa, para contrabalançar a representação da Câmara dos Deputados, constituída segundo o critério populacional, que hoje sofre distorções.
O Senado representa não o povo, mas os Estados particulares, enquanto unidades componentes da Federação. Os senadores, eleitos de modo majoritário, deveriam constituir a voz da sabedoria, por se exigir idade mínima de 35 anos e haver mandato mais longo, renovável a Casa em uma eleição em seus dois terços e em outra em seu um terço, para se manter a presença da memória e da experiência.
O Senado, além de Câmara revisora, passou a ter competência importantíssima, como a de controlar a dívida pública da União e dos Estados, aprovar a indicação de ministros do Supremo Tribunal Federal, do procurador-geral da República, de diretores das agências reguladoras, de membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Toda essa grandeza de representação, de funções, de tradição e de autoridade cai por terra diante das recentes revelações da reiterada prática de ilegalidades, de clientelismo, de corporativismo na proteção de seus pares e do próprio governo, a ponto de impunemente serem os senadores apodados de "pizzaiolos", com protestos destes últimos por serem confundidos com senadores.
Rui Barbosa, em novembro de 1899, denunciava que o Senado nada mais era do que um grande carimbo do presidente da República. Vê-se, então, que a perda da compostura política nascia já no aniversário de dez anos da República. Homens ilustres passaram pelo Senado, mas prevaleceu a soma do nosso sistema político presidencialista czarista com os vícios de uma sociedade moralmente permissiva e individualista reduzindo a prática política a um jogo de arranjos pessoais e de mandonismo despudorado.
O nosso sistema político minimiza um dado essencial à vida democrática: a responsabilidade. O sistema e a própria sociedade são complacentes com a desonestidade no exercício de cargos políticos. Mudar a sociedade é tarefa hercúlea de longuíssimo prazo. Comecemos por mudar o sistema, a ser objeto de ampla reforma política, a fim de facilitar a mudança dos hábitos de nossa vida pública.
Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça