Título: Censura, decisão judicial e incentivos a juízes :: Jairo Saddi
Autor: Chaves, Mauro
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/08/2009, Espaço aberto, p. A2

O Brasil assiste, estarrecido, à censura imposta ao jornal O Estado de São Paulo, por decisão judicial do desembargador Dácio Vieira, que proibiu liminarmente esse matutino de divulgar reportagens acerca da chamada Operação Boi Barrica, promovida pela Polícia Federal e que envolve Fernando Sarney, Filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP).

Em síntese, em 30 de julho, o desembargador Vieira acolheu recurso, denominado ¿agravo de instrumento¿, de Fernando Sarney contra decisão da 1¿2º Vara cível de Brasília, dando origem a ma das mais grotescas restrições à liberdade de imprensa já vistas desde o fim do regime militar. Para combater essa medida o jornal impetrou mandado de segurança contra o ato coator do desembargador Vieira,que foi distribuído para o desembargador Waldir Leôncio Cordeiro Lopes Júnior, da 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Segundo notícia do próprio jornal, o pedido de liminar foi indeferido ¿invocando prudência, ele deixou para deliberar acerca do mandado apenas depois que receber informações do próprio Vieira e o parecer da Procuradoria de Justiça¿. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, saiu em defesa da liberdade de imprensa ao cobrar celebridade, criticando a demora na solução da questão.

Dois aspectos de alta relevância precisam ser analisados quanto à censura imposta ao Estado e servem como exemplo ilustrativo desse debate. O primeiro diz respeito ao processo decisório dos juízes ao interpretar a lei e decidir de acordo com a sua convicção e coma prescrição do que o magistrado considera ¿justo¿. O segundo é sobre os incentivos ao comportamento que um determinado juiz assume para decidir. Portanto, o que se pretende discutir é porque razões o desembargador Vieira decidiu daquela forma e entender quais são os incentivos, positivos e negativos, que ele tem para julgar assim.

O processo decisório implica a escolha entre alternativas e, no caso de um juiz, há que observar a lei, os costumes e a jurisprudência pacificada nos tribunais superiores. Não há fronteira absoluta para a livre convicção: um magistrado não pode julgar contra a lei posta ou contra os valores estabelecidos, nem sequer pode julgar contra a jurisprudência predominante (já que será reformada mais adiante pelos tribunais superiores, representando um absoluto desperdício de tempo e dinheiro público).

Ora, uma decisão eficiente e adaptativa encontra esses limites racionais claros e definidos. Mesmo se abstrairmos o fato de o magistrado acima citado supostamente manter relações pessoais com o agravante - o que de imediato deveria gerar suspeição e impedimento, é necessário nos afastarmos definitivamente da idéia de que um juiz só deve julgar de acordo com a sua consciência.

Certo, é verdade, que quando se julga sob incerteza há resposta com base em valores adquiridos preexistentes (culturais sociais, de formação, etc). A psicologia comportamental explica o atalho de ¿ancoragem e ajustamento¿ ¿ Tversaky & Kahneman, 1974, citado num interessante artigo de Leandro Tonetto et alli, O papel das heurísticas no julgamento e na tomada de decisão sob incerteza, Estudos de Psicologia, Campinas, 23(2) 181-189, abr.jun. 2006, constatando que a âncora dos valores influencia o produto final, enviesando e causando efeitos indesejáveis; assim, qualquer magistrado deve afastar-se de âncoras não informativas, subjetivas e pessoais para o julgamento. Tal aproximação implica preconceitos e valores morais preconcebidos que tanto assolam a Justiça deste país. E, acima de tudo, cabe aos magistrado proteger valores maiores ¿ no caso em discussão, o acesso à informação da população (da qual a censura é a mais vil inimiga) é maior e mais importante do que a suposta privacidade de um indivíduo investigado pela Polícia Federal.

Mas há ainda um segundo debate igualmente necessário e importante: quais são os incentivos ao magistrado ao decidir, sobre o que é certo ou errado. E isso é fundamental para entender o caos de censura. Se qualquer agente econômico cometer um erro, é punido, seja pelo mercado, seja por força da ação estatal ¿ uma multa do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) por abuso de poder de mercado, por exemplo. A punição é um incentivo negativo ao comportamento, já que impede uma conduta em situação futura. No caso de uma decisão judicial, isso não ocorre. Se o desembargador Vieira julgar bem ou mal, nada lhe acontece. Sua carreira independe de acertos ou de equívocos. Não há critérios de avaliação de reformabilidade de decisões judiciais (¿bom¿ seria um juiz que nunca tivesse suas decisões reformadas pelo tribunal e ¿ruim¿,um que tivesse as sua sempre cassadas pelas Cortes superiores). Persistem na magistratura brasileira critérios absolutamente improváveis, como os de antiguidade e elevado subjetivismo, para não dizer influência política, na promoção de juízes.

Auferir a qualidade de decisões judiciais não é simples nem se pode fazer sem uma larga dose de subjetivismo. Mas o que não se pode admitir é um magistrado afrontar o texto constitucional, gerar custos de transação para as partes, espancar o sagrado direito da liberdade e nenhuma sanção recair sobre a sua conduta. O resultado de tal moral hazard gera apenas magistrados irresponsáveis e sem nenhuma vinculo com o direito e o que eles representam numa democracia. Ainda na mesma analogia, a suspeição ou o impedimento de um juiz, se não for fruto de sua própria consciência, deveria ser matéria urgente da Corregedoria ou dos esforços de órgãos de classe como o Conselho Nacional de Justiça.

É mais do que hora de pensar em separar os bons magistrados dos maus, os eficientes dos ineficientes, enfim, os justos dos iníquos.

Jairo Saddi é professor e coordenador-geral do curso de direito do Instituto de Ensino e Pesquisa