Título: Deslavada sem-vergonha
Autor: Chaves, Mauro
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/08/2009, Espaço aberto, p. A2

Se a sociedade brasileira não recuperar sua capacidade de mobilização para reverter a tragéca perda de valores em curso, as futuras gerações não terão idéia da época em que a vergonha na cara foi inapelavelmente banida do território nacional. Por isso sempre é bom deixar, para o registro e a reflexão de nossos pósteros, pelo menos alguns rastros, bem visíveis, da deslavada sem-vergonhice hoje reinante, ¿como nunca antes neste país¿.

O líder do governo no Senado da República apresentou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa dois requerimentos um de convocação e outro de convite à ministra-chefe da Casa Civil e candidata presidencial ungida, para ser interrogada sobre o encontro, tido ou não, com a ex-secretária da Receita Federal. O detalhe é que esses requerimentos foram apresentados, justamente, para serem rechaçados ¿ pela ampla maioria governista na comissão ¿ e com isso impedir convocação no mesmo sentido a ser feita pela oposição, já que pelo Regimento da Casa requerimento não aprovado não pode ser representado. Para muitos pareceu a coisa mais natural do mundo fazer-se uma proposta contrária ao que se pretende para impedir o adversário de faze-la. Não se percebeu que apostar no sim para obter o não e com isso impedir o sim ¿ no caso, a apuração da verdade dos fatos ¿ é tática estribada na mais deslavada sem vergonhice.

Todos têm o direito de se tornar paus-mandados, até de quem, por carências crônicas de formação ¿ ou preguiça de aprender -, não teria superioridade intelectual para os conduzir ¿ inclusive as pessoas públicas ¿ têm o direito de voltar atrás em suas decisões, especialmente se houver motivos profundos que os levem, num lapso razoável de tempo, a modificar suas convicções anteriormente anunciadas.Agora, anunciar num dia uma renúncia irrevogável para no outro dia revoga-la, sem nenhuma razão moral que o justifique ¿ antes pelo contrário -, é agir, simplesmente, escudado na mais deslavadas sem-vergonhice. É mostrar-se um pau-mandado com cara de pau. E não se diga outra coisa de um partido político que teve como bandeira principal de origem a ética na política, o combate às corruptas oligarquias ¿ e aos clãs regionais que têm crescido e enriquecido à custa do patrimonialismo -, mas que para se manter no poder perde por completo os escrúpulos, a ponto de se confundir com os que sempre trataram a coisa pública como se privada fosse.

É natural um administrador público, ao assumir novas funções, nomear para auxiliares seus pessoais de confiança de seu antecessor. O que não é natural é exonerar os que já haviam sido mantidos pelo novo administrador quando estes se mostram dispostos a confirmar fatos ¿inconvenientes¿. Foi o que ocorreu com a chefe de gabinete e outro auxiliar da ex-secretária da Receita Federal, quando passaram a confirmar o famoso encontro entre a ex-secretária e a ministra ungida, o que, por sua vez, confirmaria os sérios indícios de interferência absolutária em investigações de membro da clã sob suspeita.Exonerar de funções técnicas pessoal de carreira, para impedir depoimentos capazes de comprovar suspeitas, ou deixar que politica partidária e eleitoral desfigure uma das instituições mais importantes do Estado é sem duvida, atitude cínica. Mas com tudo isso ainda dizer que a instituição do Estado desfigurada pela política ¿tem em torno de si uma rede de proteção contra qualquer interferência política¿ é ofender a inteligência do público com a mais deslavada sem-vergonhice.

É mais do que justo o presidente de uma Casa Legislativa, que é ao mesmo tempo escritor regionalista razoável e membro da academia literária mais importante do País, discursar na tribuna por ocasião do centenário da morte de uma das maiores personalidades de nossa literatura. Mas fazer um discurso de nível colegial, mal preparado e ensaiado ¿ com constrangedoras trocas de paginas que transformaram os textos do grande homenageado num bestialógico sem pés nem cabeça ¿ e fazer tal discurso com a notória intenção de mostrar a ¿normalidade¿ da Casa, graças à ¿superação da crise¿, em razão do arquivamento (por decisão monocrática de um aliado) das maiôs cabeludas denúncias que lhe pesavam, tudo isso poderá ser considerado outra coisa que não uma deslavada sem-vergonhice?

E o que dizer da segurança institucional que diz apagar, a cada mês ¿ e não seis meses, como o estipulado no edital de licitação do serviço -, os registros de imagem das pessoas que se vão encontrar com os mais altos escalões da administração pública? Quer dizer, então, que a segurança institucional, muito bem remunerada pelos cofres públicos, vale apenas por 30 dias? Qualquer terrorista que entre num prédio ministerial desfrutará total falta de registro de imagem decorridos apenas 30 dias de sua ¿visita¿ para sondar o terreno de um eventual atentado? Muito mais verossímil, decerto, será atribuir tal ¿apagão¿ a uma simples e deslavada sem-vergonhice.

Por tudo isso, e muito mais, a grande tarefa que cabe às pessoas de bem, neste país, é tentar de todas as formas, pelos meios de que disponham, fazer com que as novas gerações readquiram a noção de vergonha. Claro que, pelo estrago já feito, não é tarefa para apenas uma década.

P.S.1 ¿ O cartão vermelho do senador Suplicy pode-se multiplicar e espelhar, por dentro e fora do Congresso Nacional, também como símbolo de exigência da volta do rubor no rosto.

P.S.2 ¿ A melhor explicação para a renovação da renúncia irrevogável é dada por Juca de Oliveira, em sua impagável Happy Hour, ao reproduzir o dialogo ¿secreto¿ entre o senador e o presidente. A platéia vem abaixo.

P.S. 3 ¿ Com a decisão do Supremo viramos todos ¿quase indigentes¿ (como o advogado de Palocci qualificou Francenildo).