Título: Alguns jamais aceitarão um presidente negro
Autor: Mello, Patrícia Campos
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/09/2009, Internacional, p. A16

O presidente Barack Obama, que em geral tem uma atitude de grande desenvoltura, ficou estupefato. Cercado de brancos de meia idade, Joe Wilson berrou "você mente!" para o presidente, que não estava mentindo.

Mas, certo ou não, o que eu ouvi foi uma afirmação implícita: Você mente, rapaz! (o termo rapaz era usado aos negros pelos brancos do sul). Foi uma explosão inesperada, por se tratar de um parlamentar republicano de segundo escalão da Carolina do Sul, que até então mal havia chamado a atenção da imprensa.

Agora, graças ao episódio ele se transformou, da noite para o dia, num herói da direita. O deputado pertence aos Filhos dos Veteranos Confederados. Em 2000, ele liderou uma campanha para que a bandeira dos Confederados tremulasse no topo da Câmara dos Representantes da Carolina do Sul, e denunciou como uma "calúnia" a declaração de uma mulher negra, cuja veracidade foi posteriormente confirmada, que se dizia filha de Strom Thurmond, o candidato segregacionista à presidência em 1948.

Hesitei em admitir que a loucura histérica - os esforços frenéticos para pintar nosso primeiro presidente negro como o outro, o estrangeiro, socialista, fascista, marxista, racista, comunista, nazista; uma pessoa de moral duvidosa que deixará os velhos morrer; uma víbora que envenenará as crianças com sua doutrina - tinha a ver com raça.

Eu tendia a concordar com alguns assessores de Obama, segundo os quais os presidentes democratas sempre provocaram uma reação raivosa em pessoas paranoicas. Mas a chocante falta de respeito de Wilson pela pessoa do presidente - nenhum democrata jamais gritou "mentiroso" para Bush quando ele nos impingiu a falsa justificativa da guerra no Iraque - me convenceu: algumas pessoas não conseguem acreditar que um negro é o presidente, e jamais acreditarão.

"Essas explosões, em grande parte, têm a ver com a vontade de tirar de Obama a legitimidade de seu cargo", disse o deputado democrata Jim Clyburn, um dos mais representativos da Carolina do Sul. "Estas questões devem ser tratadas com rigor. Meu pai costumava dizer: "Filho, lembre sempre de que quem cala consente.""

Obama, da geração pós-60, vivendo no longínquo Havaí, não participou das importantes lutas racistas da história dos EUA. Agora, ele está bem no meio de um período de turbulência racial provocada por sua ascensão. Mesmo que ele e seus assessores brancos prefiram não reconhecer abertamente o fato, este presidente é a figura do defensor dos direitos humanos por excelência - um negro cuja legitimidade é continuamente contestada por um setor radical de malucos.

Durante dois séculos, o Sul temeu que os negros ou os federados tomassem o poder. Com Obama, agora eles se defrontam com ambos. O Estado que disparou o primeiro tiro na Guerra Civil nos EUA nos presenteou com o senador Jim DeMint, que exortou os conservadores a "quebrar" o presidente derrubando seu plano de reforma da saúde; com Rusty DePass, um ativista republicano que afirmou que um gorila que fugiu do zoológico é "apenas um dos antepassados de Michelle"; com Mark Sanford, que tentou recusar o dinheiro do pacote de ajuda do presidente. E agora temos Joe Wilson.

"Muitas pessoas na Carolina do Sul repudiam a ideia de que fazemos parte da união", afirmou Don Fowler, o ex-presidente nacional do Partido Democrata, que leciona Política na Universidade da Carolina do Sul. Ele observou que quando a escravidão foi destruída por forças externas e a segregação foi abolida pelos líderes do movimento pelos direitos humanos e pelo Congresso, isso provocou uma verdadeira xenofobia.

Clyburn alertou os assessores de Obama, que querem perdoar Wilson, a ignorar os repentes ignorantes e ir em frente: "O pessoal da Casa Branca terá de descobrir como lidar com esse tipo de coisa e não deixar a situação degenerar. Caso contrário, o apoio que Obama tem recebido irá para a direção errada."

*Maureen Dowd é cronista política