Título: O Brasil antes da crise
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/09/2009, Nortas e informações, p. A3

Os números da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), referentes a 2008, representam o ponto culminante de um robusto ciclo de expansão da economia, do emprego e da renda, com avanços sociais expressivos e alguma redução da desigualdade entre os brasileiros. O mais amplo levantamento anual da realidade do País ? baseado em entrevistas com cerca de 400 mil pessoas em 150 mil moradias ? confirmou o que uma coleção de indicadores isolados vinha apontando sobre a consolidação do processo de desenvolvimento econômico retomado em 2004. É bem verdade que, em setembro do ano passado, quando os pesquisadores do IBGE foram a campo, a desaceleração do ritmo de crescimento do produto e do emprego já estava no horizonte, acompanhando as tendências internacionais. Mas poucos previam a crise mundial que seria desencadeada pela quebra do Lehman Brothers naquele mesmo mês. Vistos os dados nessa perspectiva, a pergunta inevitável é se as perdas a serem contabilizadas com toda a probabilidade pela próxima Pnad serão menos ou mais intensas do que os ganhos desta em comparação com a de 2007.

Esses ganhos dão razão a todos quantos afirmam que é impossível superestimar o dinamismo da sociedade nacional e, notadamente, das suas forças produtivas. Desde 2001, por exemplo, não se registrava tamanho aumento no nível do emprego com carteira assinada, na contramão dos prognósticos sobre a inexorável informalização do trabalho nos mais diversos setores econômicos. Com 2,1 milhões de novas contratações, verificou-se um salto de 7,1% em relação ao período precedente. No momento da pesquisa, 34,5% da força de trabalho estava registrada ? um recorde histórico. A carteira de trabalho foi "o grande diferencial" da Pnad, aponta Cimar Azeredo, responsável pela pesquisa mensal de emprego do IBGE. A população ocupada em geral também aumentou. Eram 92,4 milhões de pessoas, ou 2,8% a mais do que em 2007. A taxa de desemprego retrocedeu para 7,2% (1 ponto porcentual menor), o melhor resultado desde 1996. A renda média do trabalho continuou a crescer, chegando a R$ 1.041. Mas continuou aquém do R$ 1.074 de 1998. A desigualdade seguiu em queda, porém em proporção menor do que de 2006 para 2007. Ficou em 0,521, numa escala de 0 a 1.

Segundo o economista Sérgio Besserman, ex-presidente do IBGE, mais uma vez se evidenciou "a nossa horrorosa distribuição de renda". De fato, o rendimento médio dos 10% mais ricos é 12 vezes superior ao dos 50% mais pobres. Os primeiros concentram 42,7% da riqueza nacional. Para Besserman, o Bolsa-Família (que alcança 11 milhões de famílias) não é um instrumento de combate à desigualdade. "Realmente ajuda a tirar famílias do limiar da pobreza", afirma. "Mas o que reduz a desigualdade é a distribuição do conhecimento." Em relação a isso, para todos os efeitos práticos, continuamos marcando passo. Embora 97,5% das crianças de 6 a 14 anos estivessem matriculadas em escolas ? índice que diminui para 84,1% na faixa de 15 a 17 anos ?, não só a taxa de analfabetismo se manteve em 9,2% (12% dos brasileiros acima de 25 anos não sabem ler), como a taxa de analfabetismo funcional é de 21% no contingente com 15 anos ou mais. O conceito identifica as pessoas que são incapazes de entender e reproduzir o que leram. Entre os brasileiros plenamente letrados e esses outros, são legiões os que chegam ao mercado de trabalho com preparo apenas precário para funcionar numa economia moderna. É o dano causado pela praga aparentemente inerradicável do ensino de baixa qualidade.

Já não basta o "desafio enorme", como diz o ministro da Educação, Fernando Haddad, de "atrair a juventude, sobretudo de perfil socioeconômico mais baixo, para a conclusão da educação básica". O conhecimento assimilado pela maioria dos que a concluem permanece escandalosamente aquém das demandas do sistema produtivo. E, quando se leva em conta que os números agregados da Pnad escondem fortes diferenças regionais ? os analfabetos funcionais, por exemplo, são 31,6% da população residente no Nordeste, ante 15,8% no Sudeste ?, o problema da má escola no conjunto do País assume feições nada menos que dramáticas. O Brasil, nesse sentido, pode ser equiparado a um carro potencialmente capaz de desenvolver altas velocidades, mas que roda com o freio de mão puxado.