Título: Turismo vermelho chinês atrai milhões
Autor: Trevisan,Cláudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/09/2009, Internacional, p. A18
Locais-chave da Revolução de 1949 reforçam laços da população com PC
O casal Liu Xueshan, de 76 anos, e Meng Fanrong, de 78, viajou 26 horas de trem na semana passada para realizar o sonho que acalentava havia uma década: conhecer a cidade onde nasceu Mao Tsé-tung, o homem que liderou a Revolução Comunista há quase 60 anos.
Como eles, uma crescente legião de chineses empreende peregrinações para os locais que se tornaram símbolos da vitória contra os nacionalistas, em 1949, e da luta contra os invasores japoneses, entre 1937 e 1945.
Ao mesmo tempo em que adotam reformas rumo à economia de mercado, as autoridades de Pequim estimulam o "turismo vermelho", na esperança de fortalecer o vínculo da população com o Partido Comunista (PC).
As atrações revolucionárias atraíram 272 milhões de visitantes em 2008, alta de 18,3% em relação ao ano anterior. A expansão foi maior que os 6,3% registrados em todo o turismo doméstico geral, que mobilizou 1,7 bilhão de pessoas em 2008.
A comemoração dos 60 anos da Revolução Comunista neste ano deu impulso ainda maior a essa indústria, e os principais destinos experimentam expansão de pelos menos 30% no número de visitantes.
A maioria das atrações é localizada em regiões pobres e rurais, que se beneficiam do aumento no fluxo de turistas. A promoção das excursões revolucionárias tornou-se política oficial do governo em 2005 e atende ao duplo objetivo de manter vivo o "espírito comunista" e de desenvolver essas áreas empobrecidas.
Liu Xueshan, Meng Fanrong e o amigo Ning Hongzhu, de 76 anos, viajaram a Shaoshan, cidade natal de Mao, em companhia de seus filhos, que aproveitaram uma semana de folga para realizar o sonho dos pais. "Sem ele, não teríamos a vida feliz que temos agora", disse Meng ao Estado. "Sem ele e sem Deng Xiaoping", emendou.
Ela e o marido tinham 18 e 16 anos quando Mao anunciou a criação da República Popular da China, em 1º de outubro de 1949. "Nos velhos tempos, não tínhamos comida e quase fomos mendigar", lembrou Liu, com os mesmos sapatos de pano utilizados pelos comunistas durante a guerra civil.
REFORMA AGRÁRIA
Camponeses, Liu e Meng foram beneficiados pela reforma agrária empreendida pelo novo governo, em um processo que provocou a morte de um número estimado em 1 milhão de ex-proprietários de terra.
Depois de viajar 26 horas de trem da Província de Shangdong para Changsha, capital da Província de Hunan, Liu, Meng, Ning e os filhos integraram-se a uma excursão de quase 40 pessoas em direção a Shaoshan, onde Mao nasceu no dia 26 de dezembro de 1893. A correspondente do Estado era a única ocidental em um grupo formado principalmente por jovens.
A primeira parada no trajeto foi a casa onde nasceu Liu Shaoqi (1898-1969), o veterano revolucionário que caiu em desgraça na Revolução Cultural. Liu assumiu a presidência da China em abril de 1958, no início do Grande Salto para Frente - desastrosa tentativa de Mao de industrializar o país em tempo recorde, durante a qual 30 milhões morreram de fome.
Crítico das políticas de Mao, Liu Shaoqi foi preso pelos Guardas Vermelhos em 1967, acusado de defender o capitalismo. Nos dois anos seguintes, foi torturado e exposto a inúmeras sessões de humilhação pública. Com diabete e pneumonia, morreu na prisão.
O ex-presidente da China só foi reabilitado depois da morte de Mao e com a chegada ao poder de Deng Xiaoping (1904-1997), outro veterano perseguido durante a Revolução Cultural (1966-1976).
A casa onde Liu Shaoqi nasceu, em Ningxiang, está no centro de um memorial de 670 mil m² em sua homenagem, inaugurado em 1988. O visitante é informado ao entrar que o local é uma das bases da "educação patriótica" e um dos "dez destinos clássicos do turismo vermelho chinês". Em uma das inúmeras ironias da China de hoje, o turista também fica sabendo que o memorial comunista conta com certificado ISO 9001.
Como muitas das atrações do turismo vermelho, o museu dedicado a Liu Shaoqi é mais um local de propaganda do que de educação. Não há informações sobre as divergências entre ele e Mao, nem referências às agruras que enfrentou. Há uma única menção, dizendo que Liu Shaoqi foi tratado de maneira "injusta".
A grandiosidade do memorial contrasta com a simplicidade que ainda cerca a casa da infância de Mao Tsé-tung - os dois líderes nasceram em famílias de pequenos e prósperos proprietários de terra e frequentaram a mesma escola em Hunan.
Além da reparação dos ataques da Revolução Cultural, a homenagem a Liu Shaoqi acaba involuntariamente reforçando o fato de que sua visão econômica está muito mais próxima da China de hoje do que o igualitarismo radical professado por Mao.