Título: A volta de Zelaya
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/09/2009, Notas e informações, p. A3

A aparição do deposto presidente hondurenho Manuel Zelaya na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa foi - sem jogo de palavras - um golpe para o regime que se instalou no país em 28 de junho. Na madrugada daquele domingo em que pretendia realizar uma consulta popular considerada ilegal pelo Congresso e pela Justiça, Zelaya foi preso e despachado, ainda de pijama, para a Costa Rica. No dia seguinte, o então presidente do Legislativo, Roberto Micheletti, assumiu o governo. O plebiscito se destinava a abrir caminho a uma mudança constitucional que permitiria a Zelaya disputar um segundo mandato. Refletindo a preocupação dos seus autores com o passado de quarteladas, violência política e perpetuação no poder dos dirigentes de turno, a Constituição hondurenha considera cláusula pétrea o mandato presidencial único.

Era, portanto, uma ameaça à democracia instalada no país a manobra chavista de Zelaya, um abastado político de origens conservadoras que, depois de eleito em 2006, se deixou levar pela lábia bolivariana e o petróleo subsidiado do caudilho de Caracas. No entanto, a comunidade interamericana não poderia, a esta altura da história do Hemisfério, resignar-se à violação consumada da Carta Democrática adotada em 2001 pela OEA. A entidade foi coerente com os seus princípios ao condenar de imediato, sem meios tons, o ato de força em Tegucigalpa, repudiado igualmente pela União Europeia e a Assembleia-Geral da ONU. O chamado governo de facto de Roberto Micheletti ficou completamente isolado e assim permanece. Os EUA e organismos internacionais congelaram cerca de US$ 300 milhões em ajuda ao país.

Apesar disso, provavelmente contando com a passagem do tempo até a próxima eleição presidencial de 29 de novembro e o arrefecimento da condenação externa, o regime rejeitou a saída honrosa que lhe foi oferecida pouco mais de uma semana depois do golpe pela própria OEA e o governo americano - a proposta de acordo intermediado pelo presidente Oscar Arias, da Costa Rica, por isso conhecido como Pacto de San José, numa alusão à capital do país. Em suas linhas gerais, previa o restabelecimento do mandato de Zelaya, com a formação de um governo o mais próximo possível do que seria a unidade nacional, anistia aos envolvidos na ruptura da legalidade, abandono do plano da consulta popular e eleições na data prevista sob supervisão internacional. A inflexibilidade das autoridades hondurenhas se revelaria obtusa. Semanas atrás, Washington endureceu, anunciando que, "no momento", não aceitaria os resultados de uma eleição promovida pelo governo Micheletti.

O governo de Tegucigalpa cometeu outro erro ao não cuidar prioritariamente de impedir o regresso de Zelaya. Duas vezes, em julho, ele encenara a volta de forma ostensiva: primeiro, por avião, depois, por terra, vindo da Nicarágua. O bloqueio do aeroporto da capital e a presença militar na fronteira interromperam o espetáculo. Anteontem, numa reviravolta desmoralizante para os seus inimigos, Zelaya entrou às escondidas no país, depois de "uma caminhada difícil, por montanhas" e foi acolhido na Embaixada do Brasil. Da parte dele, uma escolha sem dúvida bem pensada. Da parte do Brasil, um ato coerente com a política do Itamaraty - ainda que possa ser classificado como uma interferência nos negócios internos de Honduras. O País, afinal de contas, tem estado à frente dos esforços da OEA para a recondução de Zelaya, tendo retirado o seu embaixador em Tegucigalpa em protesto contra o golpe.

Agora, o jogo está feito e a equação política do país muda irremediavelmente. Ou o governo de facto aceita o Pacto de San José e se retira de cena, ou tenta se manter e praticamente estimula a eclosão de distúrbios de rua que terão tudo para terminar em derramamento de sangue. Ontem, as forças de segurança já dispersaram com bombas de efeito moral e balas de borracha os partidários de Zelaya que, instigados por ele em entrevistas à TV, haviam passado a noite em frente à embaixada brasileira. Ainda que o pior não aconteça, não se imagina como Micheletti poderá resistir à inevitável intensificação das pressões externas para devolver o mando ao presidente que, sob a proteção do Brasil, o espreita, por assim dizer, do outro lado da rua.