Título: O racismo contra Obama
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/09/2009, Notas e informações, p. A3

O presidente Barack Obama recusou-se na quarta-feira a responder à pergunta de um repórter sobre o que pensava da afirmação do ex-presidente Jimmy Carter de que "grande parte da animosidade em relação ao presidente Obama se deve ao fato de ele ser negro". Carter, que nasceu no Estado sulista da Geórgia e ocupou a Casa Branca de 1977 a 1981, falava da onda de furiosos ataques de que Obama tem sido alvo, na mídia conservadora radical, em assembleias comunitárias e numa passeata que reuniu sábado último perto de 80 mil pessoas em Washington.

A razão, ou o pretexto, é o seu principal projeto de governo, a reforma do sistema americano de saúde. O ódio chegou a tal ponto que, ao defender a sua proposta no Congresso, na semana passada - em um discurso desde logo considerado por observadores independentes como "um dos momentos definidores de sua presidência" -, Obama teve de fingir que não ouviu o grito do deputado republicano Joe Wilson, da Carolina do Sul: "Você mente!" O deputado se desculpou em seguida, a grosseria foi repudiada em plenário pelo voto da ampla maioria democrata na Câmara dos Representantes, mas o incêndio se alastrou.

De um lado - e sintomaticamente -, Wilson se tornou da noite para o dia o mais novo herói da direita americana. De outro, o inédito episódio levou o ex-presidente Carter a dizer que "o racismo voltou a emergir porque muitos brancos acham que um afro-americano não está qualificado para liderar a nação". Antes dele, a ferina colunista Maureen Dowd, do New York Times, escreveu, em artigo publicado no Estado de quinta-feira, que Wilson quis dizer "você mente, rapaz". Rapaz, no caso, era como os racistas brancos se dirigiam, entre o desprezo e a condescendência, aos negros de qualquer idade.

O silêncio de Obama é compreensível. Primeiro, é coerente com a posição que adotou desde o início da campanha de se considerar um candidato "pós-racial" - de fato, nem antes nem depois de enveredar pela política ele se vinculou ao movimento negro, muito menos fez da cor um passaporte. Decerto por uma mistura de cálculo eleitoral e convicção íntima, procurou ser visto como um presidente que por acaso é negro em vez de eventual primeiro presidente negro de seu país. Em segundo lugar, tudo o que ele não precisa, a esta altura, é contaminar o seu combalido plano de reforma da saúde, que sofre uma barragem de críticas, com um debate sobre o fator racial. Isso seria no mínimo contraproducente para a superação das resistências à proposta no próprio Partido Democrata. Objetivamente, além disso, tem parcela de razão o ex-secretário de Estado Colin Powell, também negro, quando diz que a hostilidade a Obama se deve muito à beligerante cultura política americana, amplificada pelas vozes extremistas na internet, TV a cabo e talk-shows no rádio.

É verdade ainda que o presidente Bill Clinton e a sua mulher Hillary - que conduziu a montagem do que viria a ser um fracassado programa de saúde, há 16 anos - foram vítimas do que ela descreveu, à época, como "uma vasta conspiração direitista". Mas, nos ataques a Obama, é inegável que o preconceito racial se soma à oposição ideológica de muitos americanos ao que entendem ser um "projeto socialista" que expandiria o poder do Estado na esfera das decisões privadas sobre o que no limite seria, literalmente, uma questão de vida ou morte.

A eleição de Obama não transformou os EUA numa nação homogênea. A crise econômica que rebentou na reta final da campanha prevaleceu sobre o racismo, mas não o suprimiu da vida americana. Contra o candidato se fabricou a acusação de ser ele um muçulmano enrustido. Contra o presidente, a calúnia de que teria nascido no Quênia e falsificado os registros para se tornar elegível. Blogueiros hidrófobos, radialistas incendiários e os "cabeças falantes" da Fox News colocam na ordem do dia as piores criações da margem lunática da sociedade americana.

Por fim, Obama recebe, em média, 30 ameaças de morte por dia - quase quatro vezes mais do que Bush recebia. "O problema é ele ser afro-americano", diz o escritor Ronald Kessler, que entrevistou mais de cem agentes do serviço secreto. "Supremacistas brancos não o toleram na Casa Branca."