Título: Quem não tem castor caça com sambaqui
Autor: Marin, Denise Chrispim ; Paraguassú,Lisandra
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/09/2009, Vida&, p. A18

Dos imigrantes clandestinos de Nova York, o mais notório é o José. Ele chegou lá a nado. Construiu por sua conta e risco uma habitação para lá de informal - pior, "posta de pé cruamente", como disseram na ocasião os repórteres que cobriram seu debute em Manhattan. Apesar dos pesares, José teve recepção de visitante ilustre. The New York Times saudou-o. E, em dezembro passado, quando José reencarnou, após breve e sentida ausência, o jornal noticiou sua volta como a "do pródigo". Ele é a estrela de uma longa saga de recuperação ambiental na Ilha de Manhattan. Aliás, seu nome vem de José Serrano, deputado de origem porto-riquenha que arrancou US$ 15 milhões dos cofres norte-americanos para a limpeza do Rio Bronx, cujas margens estavam povoadas por lixo, esgoto e carro velho.

Serrano considerou-se "homenageado" pela celebridade do xará. José é um castor, animal outrora tão típico de Nova York que, na fundação de Nova Amsterdã, o primeiro produto comercial que os colonos holandeses despacharam da ponta da ilha para a Europa foram 5.295 peles do animal. O primeiro milionário tipicamente nova-iorquino foi o alemão John Jacob Astor, que enriqueceu exportando chapéus forrados com pele de castor. Há dois castores, inexplicavelmente azulados, no selo oficial de Nova York. Existe até uma rua chamada Beaver - ou seja, castor - entre a Broadway e a Wall Street, no centro histórico da cidade.

Só faltava a Nova York o castor propriamente dito. Agora não. A cidade tem pelo menos José, que basta como sinal de que recuperar as coisas perdidas na poeira da história está virando a última moda, nos desfiles internacionais de elegância, progresso ou educação. Se um dia a moda pegar por aqui, quem sabe chegará para o carioca a vez de reencontrar na Baía de Guanabara as baleias que o padre José de Anchieta viu, no século 16, entre ilhas floridas e praias brancas.

Mas tradição leva tempo. E os brasileiros ainda estão mais preocupados em reivindicar as prerrogativas do atraso, que dão aos retardatários o direito de cometer, com todo o conhecimento de causa, os erros que os países ricos fizeram por inadvertência, antes de darem certo na vida. E, para esse debate, Nova York oferece, mais do que José, o castor, a história da extinção de suas ostras, magnificamente contada pelo jornalista Mark Kurlansky em um livro que, de quebra, já saiu em português - A Grande Ostra, pela editora José Olympio.

É uma comédia exemplar da voracidade humana. Conta como Nova York inteira se lambuzou com as ostras do Hudson até acabar com elas e com o rio. Tem um sabor especial para quem ainda está se despedindo de seu patrimônio natural - como os brasileiros, cuja terra, além de palmeiras, tem sambaquis. E os sambaquis nada mais são do que depósitos arqueológicos de ostras, que foram colhidas como jabuticabas do tronco das árvores de mangue por uma invejável cultura pré-colombiana que, sem fazer força, tirava do mar com as mãos proteína pura e a comia crua, depositando as conchas em pilhas de até 25 metros de altura.

Eles são altares acidentais, erigidos à preguiça benfazeja de um povo que de fato morou aqui em um paraíso tropical. Os sambaquis precisam com urgência achar o seu Kurlansky. À falta de castores, as ostras são a nossa chance de entender se o passado no Brasil também merece ter algum futuro.