Título: Movimento do mercado de ações mostra outra dimensão da crise
Autor: Anatole Kaletsky
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/03/2008, Economia, p. B15

Essa é realmente a pior crise financeira das últimas décadas? A resposta pode surgir nos próximos dias, quando soubermos se Eric Dinallo, o superintendente de seguros do Estado de Nova York, conseguiu organizar um resgate das seguradoras de títulos, as empresas relativamente pequenas e anteriormente obscuras que emprestam sua boa avaliação de crédito a vários trilhões de dólares de obrigações financeiras emitidas não só por municipalidades americanas, mas também por projetos de infra-estrutura na Europa e por muitas das parcerias público-privadas que constroem hospitais, escolas e ferrovias na Grã-Bretanha.

Se um plano de resgate dessas seguradoras de títulos for aprovado nesta semana, o prazo fixado por muitos banqueiros de Wall Street e confirmado recentemente pelo chefe de Dinallo, Eliot Spitzer, governador de Nova York, este anúncio bem que poderá marcar a virada da crise financeira global. Se não, os rebaixamentos de crédito das seguradoras de títulos desencadearão dezenas ou até mesmo centenas de dólares de perdas e baixas contábeis bancárias adicionais.

Mas será essa a pior crise financeira já enfrentada pelo mundo, como sugerem tantos especialistas? Se observarmos o que o mercado de ações está fazendo, em vez de ouvir o que os analistas estão dizendo, a impressão será menos extrema. As ações bancárias sem dúvida sofrem duros golpes desde agosto, mas, comparando esses movimentos com aqueles ocorridos em crises financeiras anteriores, é difícil concluir que essa é a crise de uma vida.

Os bancos dos EUA estão apenas 20% abaixo de sua média de longo prazo em relação ao S&P 500, enquanto as ações financeiras em geral estão em sua média de 20 anos - e a queda dos valores relativos não foi mais abrupta nem mais profunda do que no fim dos anos 80 e no fim dos anos 90. Os pessimistas podem responder, é claro, que o atual nível das ações bancárias apenas prova que os acionistas ainda negam a dimensão do dano e perdas muito maiores estão por vir.

Por exemplo, Meredith Whitney, do Oppenheimer, que ficou famosa no outono ao ser a primeira a prever a queda do Citicorp, argumentou na semana retrasada que as ações poderiam cair mais 15% a 50% porque o banco teria de cortar seus dividendos mais uma vez. Mas existe outra maneira de ver essas previsões sombrias.

Se o pior que os analistas mais pessimistas de Wall Street podem dizer sobre o grande banco com o pior desempenho do mundo é que ele terá de cortar, ou até mesmo eliminar, seus dividendos para recuperar os coeficientes de capitalização, essa crise é bastante moderada em comparação com o que aconteceu com os bancos japoneses e asiáticos nos anos 90 ou com os bancos americanos e europeus na crise da dívida latino-americana.

Nesses casos, não se tratou apenas de alguns bancos mal administrados que recuperaram seu capital cortando dividendos. Em 1982, quando o México e o Brasil suspenderam o pagamento da dívida, todos os principais bancos americanos, britânicos e europeus tornaram-se insolventes, com empréstimos em atraso no valor de mais de 100% do capital social. E a maioria deles, incluindo Citibank, Deutsche, Chase Manhattan, Lloyds e Midland, permaneceu efetivamente insolvente até 1988. A situação do Japão nos anos 90 foi ainda pior.

Por que, então, tantos especialistas descrevem a atual escassez de crédito como a pior crise financeira de que se tem memória? Uma visão típica é este comentário feito na semana retrasada por David Rosenberg, economista-chefe do Merrill Lynch: ¿Confessamos que estamos no ramo há 25 anos e nunca - repito, nunca - vimos um ciclo como este¿.

Pensando em meus 30 anos de experiência em mercados financeiros, surpreendo-me com a freqüência com que ouvi declarações quase idênticas em crises anteriores, normalmente vindas dos melhores cérebros do ramo: Alan Greenspan, que descreveu a quebra do LCTM em 1998 como a pior crise de seus 60 anos de carreira; Robert Rubin, que não estava brincando quando descreveu o resgate do peso mexicano como o Comitê para Salvar o Mundo; e George Soros, que reagiu à Segunda-Feira Negra, em 1987, com uma única e assustadora sentença: ¿Isto é 1929¿.

Tais reações extremas poderiam, é claro, ser justificadas. Talvez cada crise realmente tenha sido pior do que a anterior - uma situação na qual este crescendo de caos pode, de fato, estar se aproximando de seu clímax apocalíptico. No entanto, se refletirmos, duas explicações menos sinistras para a crescente sensação de pânico parecem mais prováveis.

A primeira é que 25 ou 30 anos, o tempo de carreira típico dos investidores e banqueiros, até mesmo dos mais experientes, marcam um período bastante breve na história econômica, cobrindo apenas dois ou no máximo três ciclos econômicos. Não surpreende, portanto, que as pessoas fiquem constantemente impressionadas com cada novo ciclo que se completa - e achem difícil enxergá-lo numa proporção histórica.

A segunda explicação, mais interessante, é que, quando observamos a história - ou pensamos sobre a economia subjacente aos ciclos -, entendemos que todas as crises financeiras e mercados em baixa do passado foram uma oportunidade de compra, pois podemos ver, olhando para trás, que o mundo na verdade não acabou.

No entanto, se todos no mercado soubessem que as crises financeiras e mercados em baixa anteriores sempre criaram oportunidades de compra, outro mercado em baixa nunca mais ocorreria, a menos que grandes números de investidores acreditassem que a última crise financeira havia sido diferente - e pior - que todas as anteriores. Se as pessoas acreditassem que essa crise é apenas média, estariam agora comprando em vez de vender, e não haveria crise.

Em outras palavras, para que ocorra qualquer crise financeira, mesmo moderada, é preciso haver uma crença generalizada de que as coisas estão muito piores do que antes. Em termos de psicologia do mercado, a visão segundo a qual ¿essa crise é diferente de todas as outras¿ é apenas um eco da proclamação de que ¿dessa vez é diferente¿, sempre ouvida no auge de um mercado em alta.

No entanto, embora os comentaristas experientes sempre zombem de todas as sugestões de que as condições estruturais num mercado em alta são mais saudáveis do que nos ciclos anteriores, eles muitas vezes se rendem à crença de que as condições estruturais numa baixa cíclica são piores que nunca.

Tal deterioração estrutural realmente pode existir em certos períodos. Ela ocorreu, por exemplo, no Japão nos anos 90. Em geral, contudo, o medo de mercados em baixa excepcionalmente graves e prolongados é menos racional, e mais emocional, que a esperança de que as tendências de alta vão perdurar.

Períodos de medo são mais suscetíveis à irracionalidade do que períodos de esperança - e não só por causa da óbvia ligação psicológica entre o medo e o pânico. A experiência e a teoria econômica mostram claramente que os indivíduos motivados pelo lucro tendem a manter economias capitalistas em expansão, mas ninguém (à exceção de marxistas ortodoxos ou terroristas da Al-Qaeda)tem incentivos comparáveis para levar a economia a um declínio prolongado.

Além do mais, governos e bancos centrais em economias mistas modernas, com uma boa compreensão dos problemas de gestão da demanda e ação coletiva, também têm incentivos claros para promover o crescimento em vez de causar depressões. Isso não significa que depressões nunca aconteçam, pois os incentivos do mercado podem falhar temporariamente e os políticos podem cometer grandes erros.

Em última análise, no entanto, apostar num declínio prolongado é apostar contra e teoria econômica e a natureza humana. A frase ¿dessa vez é diferente¿ tem muito mais chance de ser verdadeira na ascensão do que na queda.

*Anatole Kaletsky escreve para o `The Times¿

Links Patrocinados