Título: Guiné-Bissau transforma-se no primeiro narcoestado africano
Autor: Dias, Cristiano
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/03/2008, Internacional, p. A18

Pobre e estrategicamente localizado, país é usado por traficantes colombianos como trampolim para mercado europeu

Cristiano Dias

Há três anos, um naufrágio na Ponta de Ondame, na região de Biombo, no litoral de Guiné-Bissau, mudou a vida dos pescadores da região. Quando puxaram a rede de arrasto, deram de cara com aqueles estranhos pacotes que embrulhavam um pó branco. Os crédulos não tinham a menor idéia do que haviam encontrado. Alguns espalharam a poeira branca sobre as plantações de tomate, liquidando o cultivo. Outros preferiram utilizar como tempero na comida. Só algum tempo depois, quando dois colombianos apareceram na cidadezinha de Quinhamel carregando uma valise com US$ 1 milhão para comprar de volta o carregamento, eles aprenderam o significado da palavra cocaína.

A incrível história dos pescadores de Biombo é apenas uma ponta da tragédia na qual mergulhou a ex-colônia portuguesa de apenas 1,5 milhão de habitantes, que rapidamente vem se transformando no primeiro narcoestado da África. Segundo estimativas da ONU, a quantidade de cocaína que entra em Guiné-Bissau em apenas um mês é igual ao Produto Interno Bruto (PIB), a soma de todas as riquezas do país, que é de US$ 304 milhões - mesma quantia que estúdios de Hollywood gastam de uma só tacada para produzir filmes como Homem Aranha 3 e Piratas do Caribe.

Esquecido em um canto da África Ocidental, Guiné-Bissau é um país acostumado a catástrofes. Independente desde 1974, acumula quatro golpes de Estado e uma guerra civil (1998-1999). Terceiro país mais pobre do mundo, atualmente ocupa a 175ª posição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU.

O último capítulo do drama guineense começou a ser escrito quando a cocaína, fugindo do saturado mercado americano, tomou o rumo da Europa. A droga chega ao país, que fica na África Ocidental, de duas maneiras: por avião da Colômbia - com uma parada no Brasil para reabastecer - ou de navios que partem da Venezuela ou do Brasil com cocaína colombiana. As embarcações viajam apenas de noite. Durante o dia, ficam imóveis e cobertas por lonas azuis para evitar serem detectadas por vigilância aérea. A jornada termina após cinco dias.

O maior problema de enviar cocaína para a Europa é a logística. Diferente dos EUA, cujo mercado consumidor está próximo dos produtores, os barões da coca precisam de um ponto de passagem para armazenar e processar grandes quantidades de cocaína antes de dividi-la entre milhares de pequenos traficantes que levam a droga ao mercado europeu.

A cocaína chega à Europa em cargueiros que desembarcam na Espanha ou Portugal, por via terrestre através do Marrocos (na antiga rota da maconha) ou diretamente em aviões por meio de ¿mulas¿ (pessoas que transportam o produto). Em um único vôo para Amsterdã, em dezembro de 2006, havia 32 mulas com cocaína de Guiné-Bissau, segundo o jornal britânico The Observer.

LUCRO

Para os traficantes, um grande negócio. O quilo da droga em Londres chega a custar US$ 40 mil, o dobro do preço pago nas grandes cidades dos EUA. Segundo o Escritório da ONU para o Crime e Drogas (UNODC), um quarto da cocaína consumida no oeste da Europa vem da África Ocidental.

A atividade dos cartéis colombianos e de outros países nessa região do continente africano cresceu rapidamente. Desde 2003, 99% de todas as drogas apreendidas na África foram encontradas no oeste do continente. Entre 1998 e 2003, a quantidade total de cocaína apreendida a cada ano ficou por volta de 600 quilos. Mas em 2007 esse total aumentou em cinco vezes - nos primeiros nove meses do ano passado, a apreensão de cocaína chegou a 5,6 toneladas.

PARAÍSO

Os narcotraficantes adotaram o desabitado litoral de Guiné-Bissau como base porque sua geografia é perfeita. O litoral, com 82 ilhas, é recortado por meia dúzia de deltas e pântanos inacessíveis por terra. O cenário idílico para o tráfico se completa com as centenas de pistas de vôo abandonadas, construídas pelos portugueses durante a guerra contra os movimentos separatistas, nos anos 60.

A falência do Estado também dá uma força. A polícia guineense não tem dinheiro para comprar rádios e ainda trabalha sobre surradas máquinas de escrever. Para perseguir os bandidões existem quatro carros, mas dois estão quebrados.

Mesmo que capturassem algum traficante, não haveria onde colocá-lo. A única prisão do país foi incendiada durante a guerra civil e os presos locais passaram a ser encarcerados em celas temporárias no prédio do Ministério do Comércio.

A falta de dinheiro transforma os órgãos do governo em presa fácil da corrupção. Tudo isso somado e temos nas ruas de Bissau, capital do país, traficantes colombianospasseando em carros de luxo e farreando nos restaurantes da cidade.

A vida só não é perfeita para os apaniguados dos cartéis porque, mesmo com o vento a favor e contrariando todas as probabilidades, a polícia realiza algumas apreensões de vez em quando. Em setembro de 2006, a polícia interceptou 674 quilos de cocaína - alguns dias depois a droga sumiu misteriosamente de uma sala do prédio do Tesouro.

Os traficantes reagiram e agoram sobram acusações de corrupção envolvendo policiais (leia quadro). Mesmo assim, desde 2005, a polícia conseguiu realizar 50 grandes apreensões, a maioria por obra do acaso. Estima-se que, em valores de mercado, a cocaína apreendida ultrapasse 20% do PIB.

Links Patrocinados