Título: Bisneto da princesa Isabel vê comunistas nos quilombos
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/03/2008, Nacional, p. A14

D. Bertrand lamenta as festas para Zumbi e o esquecimento da bisavó

A libertação dos escravos no Brasil ocorreu pelas mãos da nobreza - mais exatamente, com uma canetada da filha do imperador d. Pedro 2.º, a princesa Isabel. Conta-se que ela cogitou assinar, junto com a Lei Áurea, um decreto determinando a distribuição de terras públicas entre escravos recém-libertados. Mas ficou na idéia.

Agora, passados 120 anos, uma das reivindicações do movimento negro no País envolve justamente a questão agrária: eles querem ser donos das terras onde vivem ou viveram os quilombolas, descendentes de escravos.

Entre os opositores dessa pretensão, um dos mais renhidos é um bisneto da princesa Isabel, o senhor Bertrand de Orleans e Bragança, que pode ser chamado de d. Bertrand ou, como ocorre entre seus assessores, de príncipe.

Na opinião desse senhor de 67 anos, que faz parte de uma linhagem de ¿reis, santos e heróis¿, como diz o texto de sua biografia oficial, o verdadeiro objetivo do movimento negro não é a terra, mas a subversão da ordem: ¿O alvo desses grupos que falam em distribuição de terra, sejam eles sem-terra ou quilombolas, é o comunismo. Em todos os países onde o comunismo se implantou, o primeiro passo foi a bandeira da reforma agrária, com a conseqüente queda na produção agrícola e o caos no abastecimento de alimentos, caldo de cultura ideal para a revolução. Foi assim em Cuba, União Soviética, China, Hungria...¿

Ele fala rápido e demonstra boa memória sobre fatos dos anos da guerra fria, entre as décadas de 50 e 80. Tem a pele muito branca, olhos claros e traços finos de europeu - a mãe era alemã. Magro, porte ereto, parece muito bem para a idade.

Solteiro por opção, ele vive num casarão alugado, em Perdizes, bairro residencial da zona oeste de São Paulo. Católico fervoroso, reza o terço todos os dias, além de ir à missa e comungar.

A primeira oração é logo que acorda, às 6h30. Entre os brasões, retratos, bustos e estatuetas que decoram a casa, destacam-se imagens de Nossa Senhora de Fátima - a Virgem que apareceu para as três crianças portuguesas em 1917, o ano da revolução bolchevique na Rússia, e tornou-se a grande devoção dos anticomunistas em todo o mundo.

Após o desjejum, d. Bertrand dedica-se à leitura de jornais, revistas e correspondências. O resto do dia é ocupado com reuniões, visitas, palestras, viagens, nas quais trata de dois assuntos: a volta do regime monárquico e o combate ao comunismo.

D. Bertrand coordena o Movimento Paz no Campo, organização cujos integrantes se consideram herdeiros da antiga Tradição, Família e Propriedade - instituição ultraconservadora que se notabilizou nos anos 60 e 70 pelo apoio à ditadura militar. Seu fundador, o pensador e ativista católico Plínio Correia de Oliveira, foi o responsável pela formação ideológica de d. Bertrand desde que, na mocidade, ele ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco: ¿Papai passou o trabalho de minha formação para o professor.¿

Apesar de tanta identificação com o fundador, o descendente da família imperial está proibido de utilizar o nome da TFP. Desde a morte de Oliveira, em 1995, vários grupos iniciaram uma feroz disputa pelo seu espólio - o que levou a Justiça a proibir todos eles de utilizarem a sigla. Daí a aparição do Paz no Campo.

A organização se comunica com os apoiadores e simpatizantes por meio de um site na internet e livros escritos por seus pensadores. O último deles: A Revolução Quilombola: Guerra Racial, Confisco Agrário e Urbano e Coletivismo.

No interior do site destaca-se o blog de d. Bertrand, com ataques a quilombolas, sem-terra, ONGs que ¿querem internacionalizar a Amazônia¿ com a bandeira das reservas indígenas.

Na conversa com o repórter, numa sala de janelas fechadas e iluminada por abajures, apesar do dia ensolarado lá fora, d. Bertrand senta-se ao lado de uma gravura de sua tetravó, a imperatriz Teresa Cristina. Não há na sala nenhuma referência à princesa Isabel - cujo principal feito, a assinatura da Lei Áurea, nem é muito valorizado pelo bisneto: ¿Quando houve a libertação, o número de escravos já era muito pequeno. A grande maioria tinha sido libertada e assimilada pela sociedade.¿

O detalhe da assimilação é importante. Sinaliza a sua aversão às reivindicações dos movimentos negros: ¿Querem trazer para o Brasil uma questão racial que nunca existiu por aqui. Nossa grande vantagem histórica é justamente a miscigenação racial.¿

Ele é adepto da tese de que a monarquia começou a desmoronar após a Lei Áurea - quando perdeu o apoio dos donos de escravos. Recorda o vaticínio do Barão de Cotegipe à princesa, após ela ter assinado a lei: ¿Vossa Alteza libertou uma raça, mas perdeu o trono.¿

Um segundo depois, porém, ele acrescenta, a favor da bisavó, que a caminho do exílio lembrou a frase do barão e disse: ¿Mil tronos eu tivesse, mil tronos eu daria para libertar os escravos do Brasil.¿

Era uma boa alma, segundo o bisneto, que lamenta vê-la substituída no panteão dos heróis do movimento negro por Zumbi - no que considera mais uma tática marxista para estimular o conflito de classes.

D. Bertrand nasceu na França e, aos 4 anos, veio para o Brasil com a família - que se apresenta como o único ramo dinástico com direito ao trono, no caso da restauração da monarquia brasileira. Pela tese, ele é o segundo na ordem de sucessão, daí ser chamado de príncipe. O chefe da casa imperial é seu irmão, Luiz, de 69 anos.

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