Título: Proposta de lei da biodiversidade opõe cientistas e ministérios
Autor: Escobar, Herton
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/03/2008, Vida, p. A24

Texto que corrigiria incoerências no processo de pesquisas revelou-se `Frankenstein¿ que não agrada ninguém

Herton Escobar

Bandeiras brancas foram hasteadas, mas pesquisadores, ministérios e organizações não-governamentais continuam em pé de guerra quanto às regras de acesso aos recursos genéticos da biodiversidade brasileira. O tão aguardado anteprojeto de lei (APL), que deveria corrigir as incoerências da medida provisória que rege o tema desde 2001, foi apresentado pela Casa Civil para consulta pública no início de dezembro. O que poderia ser um presente de Natal, porém, se transformou em mais um tormento para os cientistas que se dedicam a estudar a biodiversidade nacional.

¿É um texto da Idade da Pedra, que mostra o total despreparo técnico do governo para tratar desse assunto¿, diz o zoólogo Hussam Zaher, especialista do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. ¿É uma lei totalmente embasada em exceções e expressões dogmáticas, que, se aprovada, vai engessar completamente o estudo da biodiversidade no País.¿

O texto, disponível para consulta no site da Casa Civil até o dia 13 de abril, antes de ser encaminhado ao Congresso, é rejeitado por completo por algumas lideranças científicas. A Sociedade Brasileira de Genética (SBG) classificou o projeto de ¿inaceitável¿, assim como ¿qualquer tentativa de corrigi-lo¿.

¿O texto não tem salvação; tem de jogar fora e começar de novo¿, diz a ecóloga Rosane Collevatti, da Universidade Católica de Brasília, que representa a SBG no grupo de trabalho que trata do assunto na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). ¿Não adianta mudar uma vírgula aqui ou um artigo ali. É um problema de fundo filosófico, segundo o qual o pesquisador é tratado no mesmo patamar de um criminoso ambiental qualquer.¿

¿Não dá para remendar, porque o projeto já é uma colcha de retalhos¿, reforça a bióloga Rute Gonçalves Andrade, pesquisadora do Instituto Butantã e secretária da diretoria da SBPC. A sociedade também pede uma revisão profunda do projeto.

Segundo a SBPC, o projeto ignora muitas das recomendações feitas pelos cientistas ao longo dos últimos anos. ¿O princípio que orienta as recomendações da comunidade científica é descriminar integralmente a pesquisa científica. O projeto de lei apenas tangencialmente atende a essa reivindicação, de forma muito tímida¿, afirma o grupo. Para os cientistas, a legislação vai contra o compromisso do Brasil de conhecer sua biodiversidade e agregar valor a ela.

CRISE ANUNCIADA

As pesquisas com fauna e flora do Brasil estão em crise profunda desde 2001, quando o governo federal baixou uma medida provisória (a MP 2.186) com o intuito de combater a biopirataria. O tiro saiu pela culatra, atingindo em cheio a pesquisa científica nacional. Da noite para o dia, nenhum cientista podia mais encostar numa folha ou numa formiga sem antes provar sua ¿inocência¿ e pedir autorização ao governo. Conseguir uma licença para pesquisas de campo transformou-se uma via-crúcis burocrática, que freqüentemente levava a lugar nenhum. Muitos estudos foram abandonados.

O próprio governo, desde então, tenta acabar com a MP e substituí-la por um projeto de lei amigável à ciência, mas sem sucesso. Os efeitos da medida provisória foram amenizados a conta-gotas, por meio de decretos e regulamentações, mas o projeto de lei que deveria resolver de vez a questão passou anos trancafiado na Casa Civil, amarrado em disputas ministeriais.

Quando o texto saiu, ninguém quis assinar embaixo. ¿É um Frankenstein¿, resume o representante do Ministério da Agricultura no debate, Roberto Lorena. ¿Juntaram tudo e criaram uma espécie de monstro¿, diz o assessor de políticas públicas da ONG Instituto Socioambiental (ISA), Henry Novion.

O projeto tenta regulamentar, em uma só tacada, vários temas complexos e não necessariamente relacionados: pesquisa científica básica (sem interesse comercial), bioprospecção (com interesse comercial), proteção dos conhecimentos tradicionais (como o uso de ervas medicinais indígenas) e repartição de benefícios pelo eventual uso comercial desse conhecimento.

Aí entram os interesses de vários ministérios, em especial os da Ciência e Tecnologia (MCT), Meio Ambiente (MMA) e Agricultura e Pecuária (Mapa). O MCT não quer o MMA dizendo a seus pesquisadores o que podem ou não fazer. O Mapa também não quer ninguém interferindo nos assuntos da agricultura. O MMA quer garantir a conservação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, sem acorrentar a ciência, como faz a MP atual.

O texto apresentado pela Casa Civil tenta atender a todos os interesses, mas acaba não agradando ninguém. O projeto propõe a criação de uma série de cadastros, licenças e relatórios para monitorar e controlar as pesquisas com biodiversidade e as relações entre cientistas e povos tradicionais (veja quadro acima).

¿Virou uma loucura por dados; querem cadastrar tudo¿, revolta-se João Alves de Oliveira, chefe do Departamento de Vertebrados do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). ¿É um monte de cadastro para nada, para gerenciar o vazio. Só querem informações para nos prejudicar.¿

¿Nenhum cientista se nega a prestar contas; já dedicamos 80% do nosso tempo a isso. Só queremos que essa regulamentação seja feita de forma racional¿, afirma Rosane, da SBG. ¿O que estão pedindo é absurdo.¿

O secretário-executivo do MMA, João Paulo Capobianco, reconhece que o texto manteve um viés controlador da pesquisa. E pede mudanças. ¿É preciso flexibilizar mais; queremos não só desonerar a pesquisa da biodiversidade, mas estimulá-la.¿

A proposta do MMA, segundo ele, é separar completamente as atividade de bioprospecção das de pesquisa básica, que não precisaria de autorização para ser feita. A idéia é regular a pesquisa apenas a partir do momento em que ela chegar a um produto comercial de fato - o que é a exceção -, deixando as etapas iniciais livres de amarras burocráticas e contratos. Mas ninguém conseguiu produzir um texto nesse sentido, ainda.

¿Realmente, o capítulo sobre coleta ficou muito ruim¿, diz o ex-secretário-executivo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) do MMA, Eduardo Vélez, que participou intensamente das discussões sobre a lei até o ano passado. ¿Não sei o que aconteceu, mas não era para sair assim.¿

A Casa Civil informou que não daria entrevistas e que a reportagem deveria consultar cada ministério separadamente.

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