Título: China não entende revolta dos tibetanos ingratos
Autor: Trevisan, Cláudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/03/2008, Internacional, p. A14

Avirulência dos chineses contra os monges tibetanos escapa a qualquer lógica. O que é o Tibete para o mastodonte chinês? Nada. Um país fora do mundo, uma estepe a 5 mil metros de altitude, um território ausente, nulo. O Tibete é vazio.

Sua população total representa 0,004% da população da China. O mesmo que nada. Uma ¿pulga¿ no pêlo de um ¿mamute¿; ora, sempre que essa pulga resmunga, Pequim mostra irritação: basta alguns monges desfilarem em Lhasa entoando mantras para a China entrar em transe.

O Tibete sempre assombrou os sonhos da China. A idéia de pôr a mão nesse ¿fim de mundo¿ foi assoprada em 1950 a Mao Tsé-tung por um de seus jovens conselheiros, Deng Xiao Ping.

Deng tornou-se mais tarde o chefe do império. Em 1989, os monges de Lhasa revoltaram-se, mas havia no comando um governador chinês muito enérgico que reprimiu e matou muitos monges. Esse governador se chamava Hu Jintao. Vinte anos mais tarde, Hu ascendia à liderança do império.

Uma coisa desconcerta os chineses: os tibetanos revoltam-se contra eles em vez de ¿agradecer¿. De fato, quando Pequim pôs sua mão-de-ferro sobre o Tibete em 1950, o que era esse país? Absolutamente nada: um imenso platô perdido no topo do mundo, fora do espaço e do tempo.

Naquela época, quando as legiões chinesas entraram em Lhasa, essa cidade estava afogada em lixo, em excrementos de iaques e na Idade Média. Nada se fazia lá. O tempo, lá em cima, é eterno e não é com ¿tempo eterno¿ que se fazem girar as belas máquinas da indústria moderna.

O quadro mudou após 1950. Ondas de dinheiro, ferramentas e competências desabaram sobre a Idade Média. A modernidade desabrochou.

Lhasa é recolocada no caminho certo da História. Imóveis de verdade são construídos. Semáforos são instalados nos cruzamentos. O território recebe uma rede de estradas.

A colonização chinesa é generosa. É uma ¿bênção¿. O problema é que os tibetanos não pensam assim. Eles acham que essa ¿bênção¿ é uma ¿maldição¿.

Eles conservam a nostalgia de suas pocilgas e seus moinhos de oração.

Semelhante reação para espíritos formados no materialismo marxista é simplesmente insana. É por isso, aliás, que Pequim lança seus soldados.

Esses soldados têm duas missões: uma, imediata, é restabelecer a ordem.

A segunda, de mais longo prazo, é fazer esses tibetanos compreenderem que, longe de serem infelizes, eles são muito felizes. Um programa e tanto.

Outra preocupação de Pequim é a unidade do Estado. Essa unidade vem-se fragilizando há 30 anos em razão, paradoxalmente, do fabuloso sucesso econômico da China: expansão delirante, vertigem do dinheiro e enriquecimento do país - cujos bancos estão transbordantes de dólares, ouro, créditos.

Esses triunfos, porém, custam caro. O enriquecimento traz no fundo uma ameaça de explosão.

A China está fraturada. Espantosas diferenças de luxo, de saberes, foram escavadas num ritmo alucinante. Não há ponto comum entre o interior camponês - miserável, confuso, sem esperança - e a faixa litorânea do sul, repleta de riqueza e talentos. Dois universos sem ligação, sem intercâmbio.

Hoje, pouco antes dos tumultos em Lhasa, um observador descrevia a China como ¿uma porcelana malcozida prestes a rachar¿. Essa é uma das razões para o poder central dar tanta atenção às regiões periféricas: Hong Kong, Cantão, Taiwan, etc.

São outros tantos pedaços dessa porcelana que estariam prestes a despregar-se, caso o poder central em Pequim não consiga impedir que uma de suas províncias, por exemplo, o Tibete, separe-se e ganhe autonomia.

* Gilles Lapouge é correspondente em Paris