Título: E. vendeu seus bens para obter crack
Autor: Pereira, Rodrigo; Diniz, Laura
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/03/2008, Metrópole, p. C3

Dependente de 22 anos não conseguiu tratamento público

Viciado em crack há cinco anos, E., de 22 anos, já deixou dois empregos, vendeu todos seus bens, foi ameaçado de morte, vive endividado e, por ordem de suas duas ex-sogras, não pode ver a filha de 4 anos nem as gêmeas recém-nascidas. Ele nunca conseguiu tratamento em entidades públicas. Obteve internações gratuitas em clínicas particulares graças a ¿um irmão¿ evangélico, ao procurar ajuda em delegacia e com ex-viciado. Mas acredita que os períodos muito curtos de internação, de no máximo dois meses, o levaram às más companhias e a recaídas.

E., que pediu para não ser identificado por ¿estar no meio do morro¿, vive em função do vício. Tinha voltado ontem para a casa de uma tia, após ¿cinco dias sumido¿. Sua rotina é dar ¿dez pegas por dia¿ de crack, o equivalente a duas ou três pedras a R$ 5 cada uma. ¿Só tenho a roupa do corpo¿, diz. Mesmo quando não desaparece por alguns dias, fica a noite toda em bocas de crack e vai, no fim da madrugada, para a casa de algum parente que ainda lhe dá abrigo.

¿Comecei com maconha, aos 15 anos, na escola, por curiosidade. Depois de dois anos, fui pra farinha (cocaína), que é um pouco mais pesada. Você fica mais eufórico e quer cada vez mais. Aí, fui rapidinho para o crack e afundei de vez¿, relatou, no fim da tarde, admitindo que tinha acabado de acordar e já estava ¿louco para usar mais crack¿, mesmo com uma dívida de R$ 70 com traficantes. ¿Fico tremendo, nervoso, desesperado. Penso nas minhas filhas, nos meus problemas, mas mesmo assim não consigo parar. Essa é minha vida.¿

Nas clínicas, E. foi aplicado e afirma não ter tido nenhuma crise de abstinência. ¿Era outra vida, me sentia bem, engordei e sentia disposição para trabalhar na horta. Fui até convidado para trabalhar como monitor¿, conta. Ele chegou a trabalhar por um ano em uma metalúrgica, com salário de R$ 550, e por quatro meses em uma fábrica de frios, com salário de mais de R$ 1 mil. ¿Pedi a rescisão porque dava muito dinheiro, dava para comprar um monte de drogas.¿ Ele disse que tentou voltar para os empregos, mas nunca mais foi aceito.

Vendeu todos seus bens e até as roupas para comprar mais crack ou pagar dívidas. Vendeu o fogão por R$ 10, e a geladeira, por R$ 15. Com freqüência, os parentes acabam pagando ou renegociando as novas dívidas.

E. afirma que tem vários amigos na mesma situação e que é comum ser ameaçado. ¿Já tive uma (espingarda) 12 na testa.¿ E explica: ¿Era um justiceiro, que disse que eu incomodava os moradores porque ficava andando muito de madrugada.¿ Segundo E., o justiceiro foi morto tempos depois. ¿Falam que foi a polícia ou que foi ladrão, não sei dizer quem matou, não.¿ Diz que quer uma nova internação, mas descarta uma clínica pública: ¿Não existe¿, justifica.

FALTA DE ESTRUTURA

Se especialistas já criticam a falta de atendimento integrado dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps Ad), ficariam surpresos ao saber que até o serviço médico é deficitário e confuso.

Ontem à tarde, no Caps Ad de Pinheiros, havia somente uma psiquiatra de plantão, para atender os casos de emergência. ¿Tem outra psiquiatra que está de licença médica, e não temos clínico geral¿, avisou o atendente. Antes, por telefone, uma funcionária informou que não havia atendimento para emergências, só consultas pré-agendadas. ¿A psiquiatra vem aqui no dia 1º de cada mês, não temos pronto-atendimento. Consultas, só com agendamento prévio.¿