Título: Contradições fiscais
Autor: Souza, Paulo Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/03/2008, Espaço Aberto, p. A2

Durante todo o segundo semestre do ano passado, o governo promoveu verdadeiro terrorismo na opinião pública, prevendo catástrofes econômicas caso a CPMF não fosse prorrogada. Como todos recordam, o Senado rejeitou-a ao apagar das luzes do ano legislativo de 2007. Estamos em 2008 e o Congresso Nacional acaba de aprovar um Orçamento equilibrado, sem recortes significativos em relação à proposta original enviada pelo governo ainda na expectativa de contar com aqueles recursos.

O tempo deu razão a todos os que sustentávamos que em 2008 a CPMF não seria mais necessária para o equilíbrio das contas públicas. Esse foi o tema de artigo que publiquei no Estado às vésperas da histórica decisão do Senado. Mostrei que desde 2002 a arrecadação federal havia crescido, em termos reais, o equivalente a duas vezes o que o governo obtinha em um ano de arrecadação com aquela contribuição. Hoje sabemos que, apesar do apreciável crescimento da economia brasileira em 2007, a carga tributária aumentou ainda mais, passando de 34,6% para 35,4% do Produto Interno Bruto (PIB).

É verdade que para compensar a rejeição da CPMF alguns outros impostos foram aumentados, como o IOF e a CSLL, mas o montante a ser arrecadado neste ano com essas adições corresponde a cerca de um quarto do que estava previsto obter com aquela contribuição. Mais: a arrecadação federal em janeiro do corrente ano (sem a CPMF) foi R$ 10 bilhões maior que no mesmo mês do ano passado, já descontada a inflação.

Contrariando a minha expectativa, também manifestada naquele artigo, o governo enviou ao Congresso uma proposta de emenda constitucional que contém as bases de uma reforma tributária. Trata-se de proposta tímida, ao não promover um novo pacto federativo e não desonerar a produção. Seus pontos principais são dois: 1) A criação de um novo tributo federal (o IVA federal) que substituirá algumas contribuições; e 2) novos parâmetros para o ICMS, visando a homogeneizar as alíquotas e supostamente acabar com a chamada guerra fiscal entre os Estados.

Em relação ao primeiro ponto, apesar de reconhecer ser correto reunir várias contribuições em um novo imposto, deve-se ressaltar o seu caráter parcial, ao limitar a substituição a apenas quatro delas - PIS-Pasep, Cofins, Cide e salário-educação -, deixando intocados outros impostos federais. Perde-se a oportunidade de ir mais fundo na simplificação tributária. Simplificação, aliás, que não está garantida na proposta: as mais de 600 mil empresas prestadoras de serviços, por exemplo, teriam apreciável aumento da complexidade nas suas obrigações tributárias, além de provável aumento de impostos.

Os recursos do IVA seriam divididos entre a União, os Estados e os municípios, além de atenderem parcialmente a seguridade social, a educação e o seguro-desemprego. A probabilidade de que a seguridade social e a educação venham a sofrer prejuízos é enorme, por serem, politicamente, os elos mais fracos desse condomínio.

Em relação ao segundo ponto, pretende-se eliminar a guerra fiscal passando a cobrar o ICMS no destino, limitando em 2% a alíquota interestadual, com grandes perdas para os Estados produtores. Propõe-se, então, a criação de um Fundo de Equalização de Receitas para compensá-los. Entretanto, os recursos que constituiriam esse fundo seriam os mesmos que hoje já se destinam a Estados e municípios para ressarcimento pela desoneração de exportações previsto na Lei Kandir e no Fundo IPI Exportação. Ou seja, são os mesmos recursos hoje usados para reparar perdas passadas que se propõe serem utilizados para repor as futuras maiores perdas.

É curioso que dias antes de enviar ao Congresso a proposta de reforma tributária, que supostamente tem entre seus objetivos principais o término da guerra fiscal, o governo tenha editado uma medida provisória (MP) regulamentando a criação de Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs), segundo a qual uma parte da produção dessas entidades poderia ser destinada ao mercado interno. Ou seja, o mesmo governo federal baixou neste mês medida que pode estimular a guerra fiscal entre os Estados! Essa MP será agora apreciada pelo Congresso sob o mesmo rolo compressor do governo que tem garantido a aprovação de dezenas delas. Enquanto o combate à guerra fiscal anda a pé, via emenda à Constituição, o combustível para a mesma guerra vai de avião, via medida provisória que já entrou em pleno vigor antes mesmo de ser apreciada no Legislativo.

Um dos aspectos mais complicados dessa proposta de reforma tributária é seu longo período de implantação. Oito anos para a sua plena vigência quase colocam a reforma no longo prazo. A ele se adiciona o enorme grau de incerteza em relação a grande parte de suas regulamentações específicas, que deverão ser editadas no futuro na forma de leis, resoluções ministeriais e de órgãos colegiados como o Conselho dos Secretários Estaduais de Fazenda.

Não é preciso estar familiarizado com os trâmites parlamentares no Congresso brasileiro para prever enormes dificuldades para a tramitação da reforma. Reafirmo, portanto, meu ceticismo e reitero algo que ponderei ao ministro da Fazenda quando da apresentação da proposta aos partidos de oposição: o governo perdeu, de forma irreparável, um ano precioso para fazer uma reforma tributária abrangente. Sua grande oportunidade se deu no início do segundo mandato, depois da reeleição e no auge de um período de vacas muito gordas no cenário internacional. Ainda por cima, tinha a CPMF plenamente vigente para ser usada como um trunfo no processo de negociação com a sociedade. Em todos os aspectos, os tempos agora são outros.

Paulo Renato Souza, deputado federal por São Paulo, foi ministro da Educação no governo FHC, reitor da Unicamp e secretário de Educação no governo Montoro. E-mail: dep.paulorenatosouza@camara.gov.br. Site: www.paulorenatosouza.com.br

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