Título: Jovens imigrantes levam idioma, cultura e dramas à sala de aula
Autor: Iwasso, Simone
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/03/2008, Vida&, p. A27

Acompanhando seus pais em busca de oportunidades no Brasil, eles nem sempre são bem acolhidos nas escolas

Ana Júlia faz um risco vertical, acrescenta dois traços horizontais por cima e um perpendicular à direita da figura formada. Repete o desenho, mas dessa vez adiciona um quadrado com dois riscos dentro. No terceiro, são dois quadrados, embaixo de um sinal que lembra um travessão. Alguns segundos e escreveu o nome em mandarim, sua língua materna. Quando sente saudades de Hong Kong e da escola chinesa que foi obrigada a abandonar aos 9 anos, época em que os pais emigraram para o Brasil, a garota canta músicas que agora só ela entende. E enche seus cadernos com ideogramas que parecem pássaros voando ou casinhas de madeira - pelo menos é o que acham os colegas de classe, estudantes da 5ª série de uma escola estadual na Liberdade, por tradição o bairro oriental de São Paulo.

Lá estudam outros 25 chineses no ensino fundamental e médio. Na cidade de São Paulo, de acordo com dados das secretarias estadual e municipal de Educação, há pelo menos 180. Não são os únicos a levar outros idiomas e culturas para as classes brasileiras, que há mais de 50 anos não abrigavam tanta variedade de nacionalidades - movimento retomado após a última década, quando uma nova leva de famílias da América Latina e de alguns países asiáticos em busca de trabalho e vida melhor começaram a chegar ao Brasil.

São mais de 3 mil estudantes bolivianos (parte deles de famílias em situação ilegal), 700 japoneses (muitos filhos de brasileiros que foram trabalhar como dekasseguis no Japão e voltaram para casa), 300 peruanos, 450 paraguaios, 200 angolanos, 200 colombianos, além de dezenas de equatorianos, cubanos, venezuelanos, iranianos e coreanos, entre outros.

Graças a um entendimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que fala sobre direito à educação para todos, movimentos de imigrantes conseguiram melhorar o acesso à rede pública das famílias sem documentação regularizada. Em São Paulo, além disso, parecer do Conselho de Educação dispõe que, mesmo sem visto ou histórico escolar, o aluno deve ser matriculado.

¿Há uns cinco anos eles nem chegavam à escola, tinham medo de serem denunciados ou eram recusados por falta de documento¿, conta Roberval Freire, da Pastoral do Imigrante. ¿Esse processo melhorou, as denúncias desse tipo que chegam aqui diminuíram muito.¿ Uma vez na escola, é no contato diário que as trocas positivas e as dificuldades aparecem: falta de tato, curiosidade, amizades, incompreensão e preconceito.

'VOCÊ NÃO É DAQUI'

A primeira parada de Ana Júlia no Brasil, cujo nome de batismo é Zhu Chunli, foi uma pastelaria na Praia Grande, no litoral sul paulista, há exatos três anos. Os pais faziam a massa e fritavam os pastéis; ela ajudava a servir. ¿Aprendi números, a mexer com dinheiro, cobrar o cliente¿, conta, com um português marcado pelo sotaque, mexendo no cabelo tingido de castanho.

Foi pouco para encarar a sala de aula. Como outros filhos de imigrantes, passou um ano na escola observando letras estranhas e ouvindo sons que, para ela, nada diziam. ¿Só entendia matemática, até hoje é o que gosto mais¿, conta.

Há dois anos em São Paulo, onde a mãe e o pai trabalham num restaurante e o irmão vende relógios na 25 de Março (famosa rua de comércio da região central), ela se mostra mais adaptada à língua e ao conteúdo curricular. Mas ainda estranha. ¿Escola brasileira é legal, os professores são legais, falam bastante com a gente, mas tem muita briga¿, diz. ¿Brasileiro rouba e bate na gente¿, fala, envergonhada, a prima, Luo Aaoting, de 11 anos e aparência de 8.

Perdendo o receio, elas explicam: mesmo num bairro formado por descendentes de antigos imigrantes, numa cidade que cresceu graças a ondas de migrações internas e externas, sofrem preconceito, especialmente quando ainda não sabem falar português. ¿Não gosto quando falam que é pra eu voltar pra minha terra porque não sou daqui, nem quando roubam o dinheiro do lanche porque dizem que não gostam de chinês.¿

Na cabeça de João (nome fictício, a pedido dos pais), um angolano de 8 anos, o conflito surge quando ouve de alunos (negros como ele) que vem de ¿terra de escravo¿ ou que deveria ¿voltar pra onde fugiu¿. Ele diz que foi bem tratado quando, no ano passado, começou a freqüentar a rede municipal. ¿A escola aqui é melhor, tem merenda, mas me chamam de nomes feios¿, diz. Ele não sabe explicar porque está em São Paulo. Seus pais optam por não dar detalhes - dizem só que não têm documentos.

MAIS OU MENOS CIDADÃO

Do outro lado da cidade, na região do Morumbi, são os colegas que querem dividir o lanche com os irmãos Maysa Stephanie e Michael Dylan Zambrana Guevara, de 9 e 10 anos, respectivamente. Nascidos na Bolívia, moram há cinco anos numa parte mais carente do bairro. Fazem os trabalhos domésticos para os pais, que passam o dia fora. A escola é o momento de estudo e também de brincar. ¿Adoro vir pra escola¿, diz Maysa, espontânea e com português fluente. ¿Gosto de tudo, gosto de estudar, e aqui posso fazer isso.¿

Quando chegaram, foram colocados pelo diretor na classe de uma professora filha de espanhóis, o que ajudou no início. Com o contato, os outros alunos começaram a se interessar pelo idioma e aprenderam a dizer algumas frases básicas, usadas no começo para conversar com eles. Nos corredores, ouve-se com freqüência: ¿vamos al baño¿, ¿vamos jugar¿.

¿Tentamos tudo para inclui-los. É um desafio trabalhar valores de igualdade numa realidade em que alguns se sentem mais cidadãos do que outros¿, afirma Eduardo Paulo Berardi Júnior, diretor da Escola Estadual Mary Moraes, onde os irmãos estudam. ¿Tentamos mostrar que o mundo é maior do que o que eles (os alunos brasileiros) conhecem.¿

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