Título: Greenspan previu a crise. E agora começa a levar a culpa por ela
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/03/2008, Economia, p. B6
Ex-presidente do Fed é acusado de praticar uma política monetária que foi o combustível da bolha imobiliária
A crise financeira nos Estados Unidos e o mergulho do país numa recessão de dimensões ainda imprevisíveis, mas certamente assustadoras, recolocam em julgamento a herança de Alan Greenspan, considerado por muitos o maior e melhor presidente que Federal Reserve (Fed, o banco central americano) já teve.
Desde que deixou o Fed, em janeiro de 2006, Greenspan participa ativamente do debate econômico, sem se preocupar muito com os efeitos de sua sombra na gestão do sucessor, Ben Bernanke. Esse enfrenta uma das piores combinações que um BC pode topar: contração de crédito, ameaça de crise bancária sistêmica, economia em desaceleração, preço do petróleo nas alturas e a dupla ameaça de recessão e inflação.
No novo papel de analista, Greenspan conseguiu acrescentar ao seu currículo mais uma proeza de antevisão ao atribuir, no início de 2007, a probabilidade de um terço de haver recessão nos EUA. Na época, a maioria dos analistas ainda apostava num ajuste benigno, embora uma minoria fosse até mais incisiva ao descrever o perigo.
Kenneth Rogoff, professor de Harvard e ex-economista-chefe do FMI, é pouco entusiástico com a previsão de Greenspan. ¿As recessões ocorrem em 15% dos anos em tempos normais e, portanto, projetar que há 30% de chance de uma recessão ao fim de um longo boom não me parece uma previsão ousada¿. Rogoff acrescenta que a forma mais construtiva de o ex-chairman se contrapor à visão excessivamente rósea do Fed no início do 2007 seria conversar com Bernanke, não fazer pronunciamentos públicos.
Há também o fato de uma das principais críticas feitas à gestão Greenspan - por Rogoff, por exemplo - é que ele praticou uma política monetária excessivamente frouxa depois da leve recessão de 2001 e 2002 e a liquidez excessiva derivada das baixíssimas taxas de juro foi o combustível da bolha imobiliária que se rompeu em 2007.
Na verdade, a história é mais complexa e está ligada à discussão sobre se os BCs devem ou não vigiar os preços dos ativos (imóveis, ações), além de cuidar da função tradicional de controlar a inflação. Durante seu longo mandato à frente do Fed, iniciado em 1987, Greenspan teve de conviver com diversas ¿bolhas¿ de ativos, desde a ¿exuberância irracional¿ que ele denunciou na bolsa americana, ainda em 1996, passando pela loucura da valorização das ações das empresas pontocom, em 2000, e chegando à atual crise no mercado residencial.
O mítico presidente do Fed comportou-se, na verdade, como a maior parte dos dirigentes de BCs, atendo-se à função tradicional e não agindo para ¿furar¿ as bolhas antes que crescessem demais - isto é, os juros não subiram pela razão específica da valorização dos ativos. A maioria dos economistas não critica Greenspan por causa disso. ¿É muito difícil um BC tentar regular o preço dos ativos porque muitas bolhas só ficam claras depois que estouram¿, diz Aloísio Araújo, professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio.
Mesmo desconsiderando a elevação do preço dos ativos, porém, o fato é que o Fed subiu gradativamente os juros, depois de tê-los derrubado de 6% para 1% entre janeiro de 2001 e junho de 2003 (em dezembro de 2001 já haviam caído para 1,75%). O aperto começou em 2004, levando a taxa até 5,25% em junho de 2006, por conta do aquecimento da economia e da elevação do índice cheio de inflação (o núcleo, que exclui os preços voláteis de energia e alimentos, permaneceu mais contido).
Rogoff diz que ¿Greenspan é um grande homem e foi um grande chairman¿, mas acrescenta que fica profundamente perplexo pela sua recusa em admitir que, com o benefício do olhar retrospectivo, o Fed foi lento demais no processo de subir os juros depois da mini-recessão de 2001.¿Os sinais estavam em toda a parte¿, diz o economista, lembrando que, em 2001, na conferência financeira anual de Jackson Hole, ele e o colega Maury Obstfeld apresentaram um trabalho, com Greenspan na platéia, em que alertavam para o risco de uma queda grande e abrupta do dólar e de possíveis problemas no sistema financeiro americano por causa dos enormes déficits comercial e em conta corrente. Entre 2001 e 2003, durante sua passagem pelo FMI, Rogoff martelou a mesma tecla.
Segundo o economista, ¿Greenspan atenuou o problema do crescimento explosivo do déficit em conta corrente americano, considerando que se tratava simplesmente de um sinal do aperfeiçoamento da globalização financeira¿. Para Rogoff, ¿é preciso saber ligar as coisas¿.
Ele acha que os capitais que fluíram para os EUA (a fim de financiar o déficit externo) derrubaram os juros e foram o combustível para o boom residencial e do segmento subprime, que agora estourou. O economista considera que os Estados Unidos estão vivendo a pior crise financeira do pós-2ª Guerra Mundial. ¿Houve muito erros, e não apenas do Fed, mas, se esse tivesse reagido mais agressivamente à bolha dos preços de ativos em 2004 e 2005, teria feito uma grande diferença.¿
Essa visão fortemente crítica da herança de Greenspan está longe de consensual. Alexandre Schwartsman, economista-chefe do ABN Amro para a América Latina, nota que 2002 e 2003 ainda foram anos fracos para a economia americana, com queda da produção industrial no primeiro e a redução na geração de empregos estendendo-se até o segundo. Dessa forma, na sua visão, não havia elementos concretos para justificar uma alta mais acelerada da taxa básica naquela fase.
Schwartsman acrescenta que, quando os juros começaram a subir, em 2004, iniciou-se a etapa da chamada ¿charada¿ (¿conundrum¿) dos juros de longo prazo, que caíam, apesar da alta da taxa básica do Fed - em outras palavras, a enorme liquidez, ligada aos baixos juros de longo prazo, ocorreu apesar e não por causa da política monetária de Greenspan.
Edward Amadeo, economista da Gávea Investimento, menciona uma interpretação acadêmica recente: de que a bolha imobiliária também foi fruto, paradoxalmente, do êxito de Greenspan e do antecessor, Paul Volcker, no controle da inflação. O clima positivo de estabilidade e crescimento, decorrente dos acertos da política monetária, reduziu muito a percepção de risco, criando o excesso de confiança que está na origem da irresponsável aprovação de crédito que levou à crise iniciada no mercado subprime.
Se a suposta leniência de Greenspan é controversa, há consenso sobre o fato de que as falhas na regulação e fiscalização do mercado financeiro são uma das principais causas da atual crise. Nesse quesito, ele não pode ser apontado como culpado porque o Fed é só uma parte pequena do sistema regulador das finanças no país. E, embora Greenspan tenha sempre sido um entusiasta da inovação financeira e da auto-regulação dos mercados, o clima de liberalidade estava disseminado entre quase todas as autoridades da economia global.
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