Título: O dalai-lama na mira de Pequim
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2008, Notas e Informações, p. A3

Os observadores internacionais não escondem a sua perplexidade com a escalada de ataques virulentos do governo chinês ao líder religioso e chefe do governo tibetano no exílio, o dalai-lama. Em meados do mês, como se recorda, protestos pacíficos de monges budistas, seguidos dos mais violentos distúrbios em quase duas décadas na região, eclodiram em Lhasa, a capital do Tibete, em 'comemoração' pelos 49 anos do fracassado levante de 1959 contra a anexação do país à China. Desde então, Pequim não cessa de apontar o septuagenário dalai-lama como o principal instigador das manifestações que teriam provocado pelo menos uma centena de mortes e um número indeterminado de pessoas feridas ou presas, além de se alastrar para as áreas da China com forte presença de tibetanos. A mais recente diatribe contra o líder pacifista, refugiado na Índia desde o levante de 1959 e agraciado com o Prêmio Nobel em 1989, saiu domingo no Diário do Povo.

O jornal oficial do Partido Comunista Chinês o acusa de conspirar 'para tornar reféns os Jogos Olímpicos de Pequim (em agosto), com a intenção de obrigar o governo a fazer concessões para a independência do Tibete'. O que deixa perplexos os diplomatas e analistas ocidentais que acompanham a crise é a irracionalidade da posição chinesa. Em primeiro lugar, os dirigentes comunistas sabem que, para decepção das entidades européias e americanas de defesa dos direitos humanos, o dalai-lama apoiou abertamente a afinal vitoriosa candidatura de Pequim a sediar a Olimpíada deste ano. E, embora tivesse classificado a repressão chinesa aos protestos como um 'genocídio cultural', em nenhum momento pediu o boicote aos Jogos. Segundo, a China tampouco ignora que, na semana passada, quando ameaçou renunciar à chefia do governo tibetano no exílio, a intenção do dalai-lama era apaziguadora. Com essa ameaça, tentava incitar seus compatriotas a dar por encerrados os protestos.

'A violência é contrária à natureza humana', pregou. A violência a que o dalai-lama se referiu foi certamente a que marcou as manifestações, dias antes, em Lhasa, quando turbas de tibetanos apedrejaram e saquearam casas comerciais pertencentes a chineses. (Esses e outros atos de vandalismo contra civis foram testemunhados por um único jornalista ocidental, o correspondente da revista Economist em Pequim, que previamente obtivera permissão para visitar o Tibete. No seu despacho, ele escreveu que 'a destruição foi sistemática'.) Em terceiro lugar, Pequim está farta de saber que o dalai-lama não aspira à 'independência' de sua terra. Em inumeráveis pronunciamentos, ele tem reivindicado para a chamada 'Região Autônoma do Tibete' uma autonomia cultural e administrativa como a de Hong Kong. Para negociar esse tipo de autonomia, enviados do 'mestre espiritual' budista se reuniram seis vezes, a contar de 2002, com representantes do governo chinês - sem qualquer resultado.

É notório que a resistência da China se explica pelo temor do contágio. No vasto território do antigo Império do Meio, os tibetanos não são o único grupo étnico a aspirar a alguma forma de autonomia. Em 2005, por exemplo, a mão pesada de Pequim se abateu sobre os militantes uigures da região predominantemente muçulmana de Xinjiang, no noroeste chinês. A Mongólia Interior é outro foco de sentimentos nacionalistas. Ainda assim, 'se a China fizesse uma análise racional de seu próprio interesse a longo prazo', argumenta o historiador Timothy Garton Ash, em artigo transcrito na edição de domingo do Estado, trilharia o caminho sugerido pelo dalai-lama: uma autonomia negociada para o Tibete, sem chegar à independência plena. Ash, que viveu na antiga República Democrática Alemã, acredita que 'a dubiedade característica dos regimes repressores' é o que explica a insensibilidade chinesa à importância do dalai-lama como protagonista de uma solução pacífica para a questão tibetana.

Para a China, o dalai-lama é 'uma relíquia feudal' - o que não impede as autoridades de Pequim de 'falar nele obsessivamente', nota o historiador. Para um observador ocidental é quase impossível compreender a incapacidade do governo chinês de entender as vantagens que lhe traria um relacionamento com o Tibete nas condições propostas pelo seu líder religioso.

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