Título: Onde fica o tempo da democracia?
Autor: Novaes, Washington
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2008, Espaço Aberto, p. A2

Dois pronunciamentos do presidente da República, na semana passada, levaram a memória a dar um salto de mais de uma década para trás, em busca do que diziam os relatórios sobre o desenvolvimento humano editados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). No primeiro desses pronunciamentos, em Campo Grande (MS), disse o presidente que ¿é humanamente impossível você governar se não tiver medidas provisórias. Porque o tempo e a agilidade com que as coisas precisam acontecer muitas vezes são mais rápidos do que o tempo das discussões democráticas que são necessárias acontecer no Congresso¿ (Agência Estado, 19/3). No segundo, em Foz do Iguaçu (PR), disse ele: ¿Nós estamos olhando com muita cautela porque não queremos que uma crise americana, que não fomos nós que criamos, venha a causar uma crise no Brasil. Estamos olhando todo o tempo com lupa¿ (Agência Estado, 21/3).

Durante toda a década de 1990, os relatórios do Pnud chamaram a atenção para a ¿necessidade de reinventar a governança para o século 21¿, diante dos sinais claros de insustentabilidade do panorama global, minado por fatores fora do controle dos governos, principalmente os de países mais pobres. Num tempo em que só o volume diário do mercado de câmbio já ultrapassava US$ 1,5 trilhão (tanto quanto o PIB anual brasileiro de hoje), em que os empréstimos bancários internacionais já estavam próximos de US$ 5 trilhões, em que 70% do comércio mundial (inclusive de cereais) era detido por empresas transnacionais, perguntava o Pnud como poderia o governo de um país, isolado, resistir aos movimentos especulativos e às crises do capital. Hoje, já diziam os relatórios, os governantes têm de operar durante as 24 horas do dia olhando para o computador, para saber o que está acontecendo nos mercados financeiros e cambiais do mundo, que são interligados e não param. Se eles não fizerem isso e não forem capazes de dar resposta imediata, em tempo real, podem naufragar numa crise. Mas - insistiam os relatórios - isso nada tem que ver com os tempos da democracia, que são muito mais lentos, exigem discussão, formação de consenso ou maioria, antes da decisão. A nova situação mundial - concluíam - está matando os tempos da democracia. E criando um gigantesco problema de governabilidade.

Uma das soluções discutidas era a criação da que viria a tornar-se famosa - mas nem por isso vingou - ¿taxa Tobin¿, em que o economista James Tobin propunha taxar em 0,5% as transações no mercado de câmbio para, com o produto, criar um fundo que financiasse países mais pobres em crise por causa de movimentos especulativos de capital. Mas havia outras propostas do próprio Pnud. Diante da evidência, que ele mesmo apontava, do domínio dos países ricos em instituições como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e outras, propunha o Pnud nada menos que ¿novas instituições para o século 21¿.

Começava a proposta questionando o próprio papel da ONU e a necessidade de revê-lo. Isso exigiria a criação de um Conselho de Segurança Econômica, ¿para refletir sobre um conceito de segurança mais amplo¿. E a ¿reestruturação e o fortalecimento de instituições já existentes¿, para viabilizar uma ¿gestão econômica global¿. A partir daí, seria necessária a criação de um Banco Central Mundial, capaz de levar a ¿uma saudável gestão macroeconômica¿ e uma ¿estabilidade financeira mundial¿, além de dar assistência à ¿expansão econômica das nações mais pobres¿ (relatório de 1994, pág. 83 e seguintes).

Uma das funções desse Banco Central Mundial seria exatamente ¿conceder empréstimos de último recurso a instituições financeiras¿ (seriam muito úteis na atual crise). Outra, ¿acalmar os mercados financeiros quando estes se tornarem agitados ou desordenados¿ (idem). Uma terceira, ¿regular o sistema financeiro, particularmente os bancos de depósitos¿. E ainda ¿criar e regular uma nova liquidez internacional¿. O próprio relatório reconhecia que ¿levará algum tempo - e provavelmente algumas crises financeiras - antes que um Banco Central Mundial, em larga escala, possa ser criado¿. Mas, enquanto isso, julgava possível ter ¿uma nova emissão de direitos especiais de saque¿, uma ¿gestão macroeconômica global¿ e ¿supervisão da banca internacional¿. Esta última, principalmente, continua sendo mais do que necessária: como admitir a situação atual, em que o mercado de hipotecas de um país possa abalar o mundo? E se é assim, pode-se perguntar: quantos outros mercados problemáticos como o dos ¿subprimes¿ estão embutidos no sistema?

Mas os relatórios não paravam aí. Propunham ampliar a Organização Mundial do Comércio para Organização Mundial de Produção e Comércio, ¿para cobrir também transferências de tecnologia e investimentos¿, e implantar nela a figura de um ombudsman. Mais forte ainda, ter novas regras para o segredo bancário (que impedissem surpresas como a dos ¿subprimes¿).

Já que o presidente da República se mostra preocupado com essas questões, talvez as propostas do Pnud pudessem ser incorporadas pela diplomacia brasileira. Seria uma boa pauta. Mas também seria interessante se os Poderes da República, tão obcecados com o crescimento puro e simples do nosso PIB, dessem uma olhada no relatório de 1996, que chama a atenção para a necessidade de criar um modelo de crescimento econômico ¿intensivo em trabalho¿. Porque - diz - ¿só 16% do crescimento se explica pelo capital físico (máquinas, edifícios, infra-estruturas físicas); 20% se deve ao capital natural (recursos e serviços naturais); 64% se deve ao capital humano e social¿.

Na crise de hoje pode ser importante olhar para uma experiência acumulada pelo saber em tantas partes.

P. S. - No artigo de sexta-feira passada, onde, por engano, o autor escreveu que um terço do gasto militar anual dos EUA era de US$ 190 milhões, o correto é US$ 190 bilhões.

Washington Novaes é jornalista E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

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