Título: Comida, preços e profecias
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2008, Notas e Informações, p. A3

Se depender do estímulo de preços, não faltará comida no mercado global neste e no próximo ano, nem, provavelmente, durante muito tempo ainda, apesar do falatório agourento sobre os efeitos da produção de biocombustíveis. As lavouras de soja nos Estados Unidos vão ocupar neste ano 30,2 milhões de hectares, 17,5% mais que no ano passado, segundo a primeira projeção de plantio da safra 2008-2009 divulgada pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda). A área destinada ao trigo deverá aumentar 5,5% e chegar a 25,8 milhões de hectares. A área do milho, a grande fonte de etanol nos Estados Unidos, deverá diminuir de 37,8 milhões para 34,8 milhões de hectares, ajustando-se ao novo quadro de preços. O mercado ainda funciona, apesar dos subsídios e das barreiras protecionistas em grau suficiente para afetar as decisões dos produtores. Este pormenor tem sido menosprezado pelos profetas mais pessimistas, quando acusam os produtores de etanol e de biodiesel de condenar os pobres à inanição.

Algo semelhante ao movimento observado agora nos Estados Unidos ocorreu anteriormente no Brasil. Continua a crescer a produção de álcool de cana, mas muitos projetos continuam no papel e alguns foram abandonados, já em 2007, por causa da elevação dos preços da soja, do trigo e do próprio milho, base da alimentação em vários países. No Brasil, os agricultores destinaram a esses três produtos, durante a temporada 2007-2008, mais terras do que no ano anterior. De acordo com o levantamento de março da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), as áreas ocupadas com arroz, milho, soja e trigo são, respectivamente, 0,4%, 3,4%, 1,6% e 3,5% maiores que as de 2006-2007.

A produção de álcool nos Estados Unidos de fato contribuiu para a alta de preços da alimentação, no ano passado, mas esse foi apenas um dos fatores. Problemas climáticos afetaram a agricultura na Austrália, nos Estados Unidos e na Europa e limitaram a expansão da oferta nos últimos três anos. Ao mesmo tempo, a demanda continuou a crescer na Índia, na China e em vários outros países da Ásia. A rápida expansão industrial nessas economias promove a urbanização acelerada e incorpora ao mercado consumidor algumas dezenas de milhões de pessoas a cada ano.

O problema africano é de outra natureza. Algumas economias da África entraram em rápido crescimento há alguns anos, mas a agricultura, na maior parte do continente, permanece pouco produtiva. Além disso,vários países permanecem atolados na instabilidade política e na violência. Em alguns deles, as péssimas condições de saúde, agravadas pela difusão da aids e de outras doenças contagiosas, limitam drasticamente a atividade produtiva. Milhões de pessoas nesses países dependem de ajuda para comer. Não conseguem produzir comida e não dispõem de emprego e de renda para comprar os alimentos oferecidos no mercado internacional. Dependem, para sobreviver, da ajuda e da assistência proporcionadas principalmente por governos estrangeiros, entidades multilaterais e organizações humanitárias.

As projeções divulgadas pelo governo americano derrubaram as cotações da soja e do trigo na segunda-feira. No dia seguinte, os preços desses e de outros produtos voltaram a subir, porque as condições da demanda permanecem firmes.

Prever a evolução dos mercados de produtos básicos é especialmente difícil, neste ano, por causa da crise financeira americana e de seus efeitos na atividade econômica. Se houver recessão nos Estados Unidos, haverá reflexos na maior parte da economia mundial. Mesmo com alguma desaceleração, no entanto, a China e outros emergentes deverão continuar em rápido crescimento, segundo a maioria das avaliações. Nesse caso, as cotações dos alimentos permanecerão elevadas nos próximos meses, de acordo com a avaliação de especialistas.

Se os preços continuarem estimulantes em 2008, a produção continuará a aumentar, com a ocupação de mais terras, em alguns países e, de modo geral, com maior uso de recursos tecnológicos. Por enquanto, nada, a não ser a hipótese de secas e de outros desastres naturais, pode justificar o temor de escassez de comida a médio prazo. Num período maior, serão necessários novos ganhos de produtividade para se atender à demanda crescente. Mas a pesquisa e o estímulo de mercado indicarão certamente as soluções.

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