Título: O Brasil dobra, mas não quebra
Autor: Goldfajn, Ilan
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/04/2008, Espaço Aberto, p. A2

Mundo esquisito. Crise financeira e recessão nos Estados Unidos e superaquecimento e medo de inflação nas economias emergentes. Avalia-se que o Brasil está preparado para o que der e vier. Desta vez, o País estaria menos vulnerável - esta seria a palavra-chave. Mas o que é estar menos vulnerável? Qual poderia ser o impacto da atual situação mundial sobre o Brasil?

No passado, o impacto das crises internacionais no País parecia filme hollywoodiano: todo mundo conhece o enredo. A crise entrava no Brasil pela redução abrupta da entrada de fluxos de capitais (devida à aversão ao risco no mundo), que gerava escassez de moeda forte (dólar), o que depreciava o câmbio e tornava o crédito externo escasso. Como reação, o Banco Central (BC) subia os juros, seja para atrair de volta o capital no regime de câmbio administrado ou, a partir do regime de metas de inflação, para controlar a inflação que a depreciação ocasionava. A combinação de crédito externo mais escasso e juros mais altos desacelerava a economia.

Por isso, para alguns, a vulnerabilidade permaneceria associada principalmente ao saldo no balanço de pagamentos. Em especial, a preocupação é com o déficit em conta corrente (excesso de importação de bens e serviços sobre exportação), que requer financiamento externo. Essa preocupação se tornaria mais premente, já que este ano o Brasil deve ter seu primeiro déficit em conta corrente desde 2002. A 'culpa do déficit' seria da apreciação do real e do crescimento acelerado da economia (ambos estimulando as importações).

Paradoxalmente, nessa lógica, as recentes medidas que introduziram o IOF de 1,5% sobre os fluxos de estrangeiros (em busca de títulos de renda fixa) seriam a forma de combater o problema do déficit em conta corrente, pois evitariam a apreciação cambial. Ou seja, para evitar possíveis quedas nos fluxos de capital no futuro, restringe-se o fluxo hoje em dia. Entendeu?

Mas o que é ser vulnerável? Há duas dimensões: a probabilidade de um choque (crise) no mundo atingir a economia do País; e, uma vez atingida, o tamanho do estrago que esse choque (crise) ocasionaria. Na primeira dimensão, uma economia vulnerável é a que é atingida sempre que houver uma crise lá fora. No passado, uma crise numa outra economia levaria os investidores a questionar a solidez da economia brasileira e também provocaria uma saída de capitais do País. Economias menos vulneráveis eram as que tinham poucas semelhanças com as economias em crise, portanto, pouco suscetíveis a contágio. Na segunda dimensão, uma economia vulnerável é a que sofre desproporcionalmente mais ante qualquer choque (ou crise) lá fora. Um problema numa outra economia emergente levaria a uma queda forte no Brasil. Se o problema fosse numa economia desenvolvida, o impacto seria ainda maior.

Mas tanto a probabilidade de ser atingido quanto o tamanho do impacto dependem de indicadores que vão além do tamanho do saldo em conta corrente. Vejamos. Em primeiro lugar, o passado importa. O que foi feito no período de vacas gordas é relevante. Por exemplo, o montante de reservas acumulado pelo BC nos últimos anos, que atingiu US$ 195 bilhões em final de março, permite aos investidores ficarem confortáveis quanto a uma futura falta de entrada de dólares em eventual crise. Tanto a probabilidade de crise quanto seu impacto são reduzidos pelo montante de reservas acumulado. Em segundo lugar, é importante a flexibilidade da economia para absorver choques. Nesse sentido, o regime de câmbio flutuante é relevante, já que, ao contrário do câmbio fixo, a depreciação ajuda a economia a equilibrar-se, pois reduz o incentivo à saída de capitais e incentiva as exportações. Como na física, a economia dobra, mas não quebra. Finalmente, é relevante a capacidade de reação da equipe econômica e do presidente às dificuldades que se apresentem.

No caso atual, qual poderia ser o impacto sobre o Brasil? O roteiro potencial poderia ser o seguinte: as restrições de crédito advindas da crise financeira no mundo desenvolvido poderiam acabar afetando o resto do mundo, inclusive as commodities (o que depende crucialmente da China), depreciando o câmbio no País (devido à perda do valor esperado das exportações de commodities) e pressionando a inflação e os juros no Brasil. A economia desaceleraria no País em razão da menor demanda por suas exportações, do menor fluxo de capital em função da crise no crédito e da alta de juros.

Com o acúmulo de reservas, no entanto, o impacto sobre o real poderia ser limitado (não haveria corrida especulativa, dada a abundância, não escassez de dólares), colocando um freio no processo.

Um ponto crucial é o impacto financeiro de uma possível depreciação no Brasil. Ao contrário do passado, quando as depreciações aumentavam a dívida pública e não alteravam o passivo externo do País em dólares, o impacto atual é o inverso. Tanto a dívida pública quanto o passivo externo do Brasil caem significativamente com as depreciações. A estimativa da Ciano Investimentos é de que quase metade do passivo externo do País hoje é denominada em reais, o que faz com que uma depreciação de 10% reduza o passivo externo em aproximadamente US$ 42 bilhões (ou 5% do total). Ou seja, num momento de dificuldades, a depreciação reduz as obrigações do Brasil, melhorando a perspectiva futura. Isso reduz a vulnerabilidade do País.

Em suma, a precaução adotada no passado (acúmulo de reservas e transformação do passivo externo em reais) e a flexibilidade advinda do regime de câmbio flutuante (economia dobra, mas não quebra) têm reduzido a vulnerabilidade da economia brasileira. Isso não quer dizer que não haveria impacto de um recrudescimento da crise mundial, apenas que, desta vez, uma gripe no exterior significaria uma gripe no Brasil, não uma pneumonia.

Ilan Goldfajn, sócio da Ciano Investimentos e diretor do Iepe da Casa das Garças, é professor da PUC-Rio. E-mail: igoldfajn@cianoinvest.com.br