Título: Tributos - o projeto do Senado
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/04/2008, Espaço Aberto, p. A2

A estrutura tributária brasileira está para a economia do País assim como um sapato defeituoso está para quem o usa. A alta carga tributária aperta os pés da economia e dificulta seu andar mais rápido. É também uma carga torta, levando a desequilíbrios e outras distorções, como sua complexidade e o tempo que toma do contribuinte. E provoca incômodas calosidades aqui e ali, em regiões, setores e articulações da economia.

O que fazer com esse sapato defeituoso? Nas ruas sempre vejo oficinas abertas para consertos e reformas de sapatos. Lembro-me de que uma delas se dizia renovadora de calçados, oferecendo reformas de maior profundidade. É disso que precisamos, de uma estrutura tributária renovada.

Há tempos se fala na necessidade de alterar essa estrutura, mas este é um país com grande propensão a procrastinar soluções. Neste ano, entretanto, em fevereiro e março surgiram na esfera política duas propostas sobre o assunto, o que deve ser louvado em face dessa propensão. Mas há uma importante diferença entre elas.

Nas suas origens, a primeira veio do Executivo federal, enviada à Câmara dos Deputados. A segunda surgiu no Senado, na forma de um relatório preliminar da Subcomissão Temporária da Reforma Tributária, cujo relator é o senador Francisco Dornelles (PP-RJ) e tem como presidente o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). A importante diferença está em que a proposta do Executivo, em que pesem seus avanços, está mais para um conserto; a do Senado, mais profunda, se credencia como uma renovação.

Um bom exemplo da diferença é o Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), que está nas duas propostas, a seguir referidas como a do Executivo e a do Senado, neste caso apenas no sentido de que surgiu lá, pois está na forma desse relatório preliminar.

Na proposta do Executivo há dois IVAs: um, estadual (com participação dos municípios na receita), chamado de um 'novo ICMS', com regras unificadas nacionalmente; e outro, federal, o IVA-F, que substituiria a Cofins, o PIS, a Cide-Combustíveis e a contribuição sobre folha para o salário-educação, mas deixando de fora o IPI.

A proposta do Senado cria um só IVA, nacional, incorporando os mesmos tributos do IVA-F, mais o IPI, o ICMS e algumas taxas e contribuições hoje devidas ao governo federal. A cobrança seria estadual e a distribuição da receita entre a União e os Estados (e daí aos municípios) ocorreria automaticamente pela rede bancária arrecadadora, seguindo em linhas gerais a proporcionalidade com que hoje participam do total da receita desses impostos.

A fiscalização do IVA nacional seria de competência estadual, inclusive sobre a parcela da União, com o que a proposta procura desde logo responder à crítica de que os Estados perderiam poder fiscal com a reforma proposta.

Numa entrevista sobre o assunto, o senador Dornelles também argumentou que um IVA nacional se justifica porque na sua essência os impostos, taxas e contribuições que substituiria têm a mesma base de cálculo. A entronização do IVA nacional seria facilitada também por um único cadastro de contribuintes e pela nota fiscal eletrônica, simplificando a cobrança e reduzindo custos para os governos e para os contribuintes.

A proposta do Senado também se estende a aspectos não contemplados pela do Executivo. Assim, o Imposto Territorial Rural e o IPTU passariam a constituir um único imposto, o mesmo acontecendo com os impostos de transmissão intervivos e por herança.

Entre os pontos comuns, ambas procuram acabar com a guerra fiscal na sua forma atual, na qual há Estados que usam diversos mecanismos para reduzir o ICMS de alguns contribuintes, à custa de outras unidades da Federação.

Os textos que vi das duas propostas - o referido documento do Senado e uma apresentação da proposta do Executivo preparada pelo Ministério da Fazenda - são também interessantes pelos diagnósticos que apresentam, mas novamente o do Senado se destaca. Retoma temas como a forte elevação da carga tributária, o fato de que é relativamente maior para quem tem menores rendimentos e a posição do Brasil em estudo que mede o custo de pagar impostos em 177 países. Nesse estudo o Brasil surge como um campeão às avessas, onde as empresas gastam o maior número de horas por ano para cumprir suas obrigações tributárias.

Aliás, os dois primeiros capítulos da proposta do Senado, que tratam do desempenho das administrações tributárias e da funcionalidade do sistema tributário, e a parte introdutória da proposta do Executivo constituem conjuntamente uma ótima síntese da estrutura e das distorções dos impostos brasileiros. As duas podem ser consultadas via internet (www.fazenda.gov.br/portugues/documentos/2008/fevereiro/Cartilha-Reforma-Trib utaria.pdf e www.senado.gov.br/tassojereissati/Destaques/PropostaTributaria.pdf).

Voltando à necessidade de renovação, e não apenas de um conserto da estrutura tributária brasileira, não direi que a proposta do Executivo tenha apenas características de meia-sola. Mas, mas mesmo com seus méritos, também não a vejo indo além de um solado novo, pois não tem a abrangência e a profundidade da do Senado.

Há quem reconheça que esta última é melhor, mas enfrentaria maiores dificuldades políticas na sua aprovação. Ora, ela veio de políticos que têm como um de seus papéis mais importantes o de buscar o entendimento que permita a aprovação de projetos de interesse nacional. Assim, eis aí uma oportunidade de o Congresso, a partir de uma discussão que privilegie a proposta do Senado, se afirmar efetivamente como Casa Legislativa, fugindo do seu hábito de apenas referendar os projetos que vêm do Executivo.

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

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