Título: Base frágil
Autor: Werneck, Rogério L. Furquim
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/04/2008, Economia, p. B2

Poucas semanas após ter o governo afinal encaminhado ao Congresso o tão aguardado projeto de reforma tributária, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, por meio da Subcomissão Temporária de Reforma Tributária, publicou projeto alternativo, bem diferente do enviado pelo Executivo. É alvissareiro que o Legislativo ainda se mostre capaz de formular, por iniciativa própria, proposta articulada de reforma tão complexa, como a que se contempla para o sistema tributário. Contudo, o surgimento, a esta altura, de um projeto concorrente com o do Executivo, em relatório apresentado por fiel senador da coalizão governista, deixa mais do que claro que, ao contrário do que vem sendo aventado com certo otimismo, não faz parte das prioridades do governo mobilizar suas vastas forças no Congresso para conseguir pronta aprovação do seu projeto de reforma tributária. O Planalto não parece dispor nem mesmo de um esboço rudimentar de plano de jogo que possa viabilizar tal feito em ano de eleição municipal.

Mesmo que o projeto do Executivo não seja para valer, ou não seja para agora, pelo menos mantém aceso o debate sobre a reforma e sua urgência. Nesse quadro, é preferível que a reforma continue tendo arquitetura aberta e que o País possa contrapor projetos distintos. A proposta da CAE é um saudável contraponto ao projeto do governo. Explora linhas diferentes de reforma e ajuda a arejar a discussão. De um lado, mostra-se mais ousada em certos aspectos quando vislumbra reforma mais radical da tributação do valor adicionado, com a eliminação do ICMS e a criação de um IVA nacional. De outro, mostra-se mais contida quando opta pela tributação do valor adicionado na origem, temperada com uma regra de repartição da parcela que caberia aos Estados no IVA nacional na proporção dos níveis de consumo de cada um deles.

O que preocupa é que, embora explorem linhas de reforma tão distintas, os dois projetos agora em pauta padeçam de uma mesma falha fundamental de concepção. Uma fragilidade que poderá comprometer seriamente o alcance da reforma, ao condenar a tributação do valor adicionado no País a incidir sobre base fiscal mal concebida. Para que esse ponto possa ser percebido com mais clareza, vale a pena recorrer a breve esforço de abstração e, por um minuto, deixar de lado todo o emaranhado de complicações com que a reforma terá de lidar em decorrência do complexo federalismo fiscal brasileiro. Mesmo que o Brasil fosse um país unitário e tais complicações não existissem, a reforma ainda seria um grande desafio. É a natureza desse desafio que não está sendo corretamente percebida.

Para que a reforma permita desoneração integral das exportações e dos investimentos, toda a tributação do valor adicionado terá de ser concentrada no consumo das famílias. Para que a receita seja equivalente à que hoje vem sendo gerada pelo vasto leque de tributos indiretos superpostos, tal tributação terá de incidir sobre parte substancial do consumo agregado. Se a base de incidência não for suficientemente ampla, as alíquotas requeridas se tornarão proibitivas e a reforma ficará inviável.

Cerca de três quartos da carga de tributos indiretos, que hoje recai sobre o consumo, incidem sobre bens produzidos pela indústria de transformação e serviços de telecomunicação e eletricidade que, em conjunto, compõem não mais que a metade do consumo agregado. A carga de tributos indiretos que incide sobre a outra metade, constituída basicamente de serviços, é incomparavelmente mais moderada. Se o objetivo é, de fato, dotar o País de um sistema harmônico de tributação do valor adicionado, a taxação terá de se distribuir de forma mais homogênea entre os diversos bens e serviços. Não faz sentido, por exemplo, que o País pretenda avançar século 21 adentro, rumo à sociedade do conhecimento, impondo alíquotas efetivas da ordem de 50% sobre telecomunicações.

Para que a tributação do valor adicionado possa ser feita sobre ampla base de consumo, com alíquotas razoáveis, é crucial que os serviços estejam harmonicamente incorporados a essa base. E aqui vem o ponto-chave. É difícil que tal incorporação possa ser conciliada com a manutenção da desengonçada cobrança do Imposto Sobre Serviços (ISS) na esfera municipal, em bases cumulativas, como contemplam os dois projetos de reforma.

*Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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