Título: Avanços e retrocessos na reforma tributária
Autor: Queiroz, Cid Heraclito de
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/04/2008, Espaço Aberto, p. A2

O governo submeteu ao Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional (PEC nº 233/08) objetivando a reforma tributária, que altera, acrescenta e suprime 22 artigos, 53 parágrafos, 98 incisos, 38 alíneas e 2 itens da Constituição, num total de 213 novas regras. Portanto, não se pode falar em simplificação.

A PEC avança, de fato, na simplificação do sistema tributário, ao extinguir três contribuições sociais - Cofins, contribuições ao PIS e ao salário-educação - e a Cide-Combustíveis, que serão compensadas pela criação do Imposto sobre Operações com Bens e Prestações de Serviços, ao qual o governo, estranhamente, atribuiu a sigla IVA-F (poderia ser IOBS). Extingue, ainda, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), que será compensada por adicionais ao Imposto de Renda (IR), com alíquotas diferenciadas por setor de atividade econômica, o que já ocorre com as instituições financeiras. Por falhas redacionais, o ¿IOBS¿ poderá incidir sobre operações de venda de bens do ativo permanente das empresas e os adicionais do IR poderão alcançar não só as pessoas jurídicas, mas também as pessoas físicas. O sistema também será simplificado com a implementação do ¿novo ICMS¿, ao longo de oito anos (atingindo, assim, o futuro governo), mediante lei complementar, em lugar das 27 leis dos Estados e do Distrito Federal. O ¿novo ICMS¿ é objeto de 52 novas normas constitucionais, mas bastaria um singelo artigo: ¿O ICMS será instituído e regulado em lei complementar.¿ Aos dois novos impostos não se juntarão, no entanto, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), como na chamada ¿proposta Pedro Parente¿, que criava um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) com a respectiva receita repartida na rede bancária arrecadadora.

Pretendendo eliminar a ¿guerra fiscal¿ entre os Estados, a PEC dispõe que, nas operações interestaduais, o ¿novo ICMS¿ pertencerá ao Estado de destino, menos a parcela de 2% que pertencerá ao Estado de origem, salvo nos casos do petróleo e seus derivados e da energia elétrica, em que o imposto pertencerá integralmente ao Estado de destino, mas o governador do Rio de Janeiro já protestou contra essa discriminação e outros governadores reivindicam a retenção de 4%, ou mais, no Estado de origem. A controvérsia persistirá.

A PEC concentra sobre uma mesma base de cálculo - operações de importação, produção e comercialização - a incidência de dois impostos, o ¿IOBS¿, com alíquota de, pelo menos, 13% (para proporcionar a mesma receita obtida com as contribuições extintas e compensar a redução da contribuição previdenciária patronal), e o ICMS, com alíquota de 18% (padrão) ou mais, num total superior a 31%, o que, evidentemente, constituirá uma iniqüidade e estimulará a sonegação.

A PEC permite que a lei ordinária estabeleça ¿reduções gradativas¿ da contribuição previdenciária patronal, do segundo ao sétimo ano subseqüente ao da promulgação da emenda. As reduções, que hoje independem de emenda, importarão numa expressiva perda para a arrecadação da Previdência, já onerada em mais de R$ 40 bilhões anuais por diversos ¿subsídios previdenciários¿ (as bondades com o dinheiro alheio). Além disso, a contribuição previdenciária guarda íntima relação com os salários e nenhuma relação com o faturamento das empresas. Para pagar menos tributos o empresário pode estruturar, adequadamente, a folha de salários, mas, evidentemente, não irá reduzir o próprio faturamento. Num retrocesso, tal medida dificultará a criação do Fundo do Regime Geral da Previdência Social (artigo 250 da Constituição), a ser gerido pelos próprios trabalhadores e empregadores e que constituirá, um dia, a redenção de aposentados e pensionistas.

Quanto à matéria orçamentária, a PEC importa noutro retrocesso ao estabelecer uma babel de vinculações, por prazos indeterminados, que, cada vez mais, ¿engessarão¿ o Orçamento, o instrumento adequado para estimar receitas e autorizar despesas, em função das políticas dos sucessivos governos e diferentes conjunturas econômicas e sociais. Surpreendentemente, o governo, que queria a prorrogação da CPMF, propõe a redução da própria receita, para aumentar as parcelas destinadas aos Estados e municípios. A PEC avançaria muito se, inspirada no princípio da não-afetação das receitas, revogasse não só a Desvinculação de Recursos da União (DRU), o monstro que gera imensas distorções orçamentárias, como também as demais vinculações, de modo a devolver ao Congresso a sua principal finalidade, qual seja a de aprovar um Orçamento verdadeiro. Preocupa, terrivelmente, o fato de que à União restarão apenas 26,38% da receita de IR, IPI e ¿IOBS¿ para custear todas as suas despesas. Hoje a União dispõe de 52% do IR, 42% do IPI, 71% da Cide e 100% da Cofins, da CSLL e das contribuições ao PIS e ao salário-educação.

Foram incluídas na repartição das receitas da União (IR e IPI), em favor de Estados e municípios, não só as derivadas do novo ¿IOBS¿, mas também a receita do imposto sobre grandes fortunas, de modo a atrair a força dos governadores e prefeitos para a criação desse tributo e, assim, aumentar o ¿bolo¿ a ser repartido. Ora, esse imposto, que fracassou onde foi instituído, estimula a transferência de capitais e outros bens para o exterior, desestimula a poupança, tem caráter confiscatório, esbarra nas dificuldades para o levantamento e avaliação dos patrimônios e importa em dupla tributação (bis in idem), pois a fortuna nada mais é do que a renda já tributada e poupada.

Enfim, a reforma tributária acena com apreciável simplificação no sistema tributário, embora dependendo de leis complementares a serem aprovadas pelo Congresso Nacional, mas envolve novas controvérsias e lamentáveis retrocessos.

Cid Heraclito de Queiroz, advogado, foi procurador-geral da Fazenda Nacional (1979-1991)

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