Título: Reflexões sobre a reforma tributária
Autor: Martins, Ives Gandra da Silva
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/04/2008, Espaço Aberto, p. A2

O governo federal já encaminhou ao Congresso Nacional seu projeto de reforma tributária, seguindo a tradição de todos os governos anteriores. Collor, com a Comissão Ariosvaldo, Itamar, tendo recebido sugestões de diversas comissões, inclusive da Comissão Miguel Reale, Fernando Henrique, com a PEC 175, e Lula, com a PEC 41, em seu primeiro mandato, apresentaram projetos ao Congresso, sem se empenharem, todavia, na alteração do sistema. Todas as tentativas trouxeram frustração e as poucas modificações realizadas pioraram a Lei Suprema.

Estou convencido de que o governo federal nunca teve interesse numa reforma profunda, pois, tendo assegurado, com o texto atual, em torno de 60% do bolo tributário, teme que possa vir a perder receita se Estados e municípios se unirem para elevar a partilha fiscal. É de lembrar que, na Constituição de 1988, a União, que repassava apenas 33% da receita do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Renda (IR) para Estados e municípios, passou a repassar 47%, o que a obrigou a criar a Cofins e aumentar sua alíquota de 0,5% (antigo Finsocial) para 7,6%, e a do PIS de 0,65% para 1,65%.

Assegura, contudo, o governo que, agora, é pra valer.

As cinco grandes novidades são:

Compactar Cofins, PIS, Cides e salário-educação num grande IVA;

compactar IR e CS Lucro num só tributo;

reduzir a contribuição previdenciária sobre a mão-de-obra;

reformular o ICMS para evitar a guerra fiscal;

ressuscitar o imposto sobre grandes fortunas, decadente em todo mundo, repartindo-o entre Estados e municípios.

A simplificação, com redução da carga tributária, é meta de impossível avaliação sem a quantificação das alíquotas, a serem ainda definidas, e sem os projetos de leis complementares e ordinárias, a serem elaborados.

De início, qualquer reforma constitucional em profundidade gerará, necessariamente, reformulações conceituais, cujo conteúdo poderá ser questionado perante os tribunais. Na mudança do IVC para o ICMS, o STF levou 20 anos para definir, conceitualmente, o que seriam 'operação', 'circulação' e 'mercadoria'.

Teremos o IVA, que é um imposto, o qual, fora as vinculações constitucionais, é tributo desvinculado, incorporando contribuições, que são tributos vinculados a determinada finalidade. Certamente, a definição do perfil constitucional levará tempo para ser conformada pelo Judiciário. E a manutenção do artigo 149 da Constituição federal não impedirá que o governo crie, no futuro, por legislação ordinária, outras Cofins.

A meu ver, a compactação de Cofins e Cides poderia ser realizada por lei ordinária, sem necessidade de modificação constitucional, o mesmo ocorrendo com a do IR e a da Contribuição Social sobre o Lucro, já com regime jurídico idêntico. Apesar de PIS e salário-educação estarem previstos constitucionalmente como tributos distintos, eles poderiam ter o mesmo regime jurídico ordinário, sem necessidade de mudança da Lei Suprema.

É de louvar a redução da contribuição previdenciária sobre a folha de salários, se não implicar aumento de outras imposições.

No ICMS, haverá Estados ganhadores e Estados perdedores, ou seja, os que enviam mais mercadorias para outras unidades da Federação do que recebem. O programa do governo, de que um Fundo de Estabilização - sem perfil definido - compensará tais unidades, é compromisso em que poucos acreditam, pois a tradição das autoridades federais, em matéria tributária, é não cumprir suas promessas, que comprometem apenas as pessoas que as recebem.

Admitindo, todavia, que os Estados ganhadores não vão abrir mão das receitas acrescidas - são a maioria do Congresso Nacional, o que é necessário para aprovar a emenda à Lei Suprema -, os Estados perdedores precisarão recuperar as suas. Se tais recursos não vierem de aumentos internos, terão de vir, em valores consideráveis, da União, que deverá também partilhar com os Estados o IVA, imposto que resultará da integração da Cofins e do PIS, que hoje não são partilhados.

O mais grave, todavia, é que toda a regulamentação do ICMS - à luz de uma lei complementar (LC), possivelmente, mais abrangente que a LC 87- será elaborada pelo Confaz. Em outras palavras, os Estados 'importadores líquidos', que são a maioria, imporão aos Estados 'exportadores líquidos', a minoria, um regulamento que terá de ser seguido pelos segundos. Inclusive a definição das alíquotas será de competência do Confaz, cabendo ao Senado aceitá-las ou rejeitá-las, mas não modificá-las.

Para um órgão que, por seu notório fracasso, gerou a guerra fiscal, parece-me que é dar-lhe força excessiva, violando tal delegação de competência legislativa o princípio da legalidade (cláusula pétrea). O próprio regime de destino já não é tão de destino, pois parte do tributo, correspondente a uma alíquota de 2,3% ou 4%, será cobrado na origem.

Quanto ao obsoleto imposto sobre grandes fortunas, se for introduzido, não mais sairá do sistema, pois será partilhado entre 5.500 entidades federativas. Será - como ocorreu nos países que o adotaram e abandonaram - um fantástico desestímulo à poupança e aos investimentos, podendo gerar fuga de capitais. E nem se fale que será um meio de distribuição de riquezas, pois, no Brasil, o custo da carga tributária beneficia mais os detentores do poder do que o povo, lembrando que o Bolsa-Família, que atende 11 milhões de brasileiros, é suportado por menos de 1,5% do Orçamento federal!

Qualquer avaliação do projeto, todavia, só será possível com a apresentação dos textos de leis ordinárias e complementares a serem elaborados e do funcionamento dos Fundos Compensatórios para recompor as perdas dos Estados lesados pela alteração do regime do ICMS.

Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das Universidades Mackenzie, UniFMU, Unifieo, Unip, CIEE-Estado de São Paulo e das Escolas do Comando e Estado-Maior do Exército e Superior de Guerra

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