Título: Ficção institucional
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/04/2008, Notas e Informações, p. A3
O Congresso Nacional dará mais um passo para desmoralizar o ritual orçamentário, se aprovar a mais importante inovação contida no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2009, enviado na terça-feira ao Legislativo. O Executivo pretende ser autorizado a gastar até um quarto das verbas previstas para investimentos e custeios não obrigatórios, se o projeto de orçamento não estiver aprovado no começo do ano. Até agora, o governo tem sido autorizado, nessas condições, a realizar até 1/12 de certas despesas obrigatórias e indispensáveis a certas funções básicas, como pagamento de pessoal, de pensões e de juros. Investimentos ficam limitados ao montante de restos a pagar do exercício anterior.
O atraso na aprovação do projeto de lei orçamentária tem sido freqüente desde os anos 90. Como o ano fiscal começa em 1º de janeiro, o Congresso deveria votar a proposta do Orçamento-Geral da União (OGU) até dezembro, antes do recesso. Esta é, pelo menos, a norma do bom senso. Mas, como essa norma tem sido raramente observada, o governo é forçado, com freqüência, a trabalhar durante alguns meses, todo ano, sem uma programação financeira completa.
Em alguns anos, até o projeto da LDO tem sido votado com atraso, isto é, depois de 30 de junho. Isso ocorreu de novo em 2007. Por isso, o Ministério do Planejamento foi forçado a elaborar a proposta da lei orçamentária sem dispor de diretrizes aprovadas pelo Congresso e sancionadas pelo presidente da República.
Com a liberdade já atribuída ao Executivo para realizar certos gastos essenciais e até para investir as verbas de restos a pagar, o Congresso, na prática, fica dispensado de cumprir prazos. E, com isso, o Legislativo perde relevância, porque se deprecia uma das funções mais importantes conquistadas pelos Parlamentos ocidentais no início do Estado moderno - a prerrogativa de fixar a receita e a despesa do governo, controlando-o desta forma. Essa depreciação será maior, se a inovação proposta na LDO de 2009 for aprovada e o Executivo se tornar ainda menos dependente do Congresso para realizar os gastos previstos na proposta orçamentária.
A pretensão do Executivo já contém uma avaliação lamentável do Legislativo: se o Parlamento não cumpre seu papel, encontre-se uma solução legal para o Executivo funcionar com um mínimo de restrições financeiras. Tornou-se lugar-comum, no Brasil, a qualificação do orçamento federal como peça de ficção. Mas esse lugar-comum descreve, indiretamente, uma realidade mais grave: a ficção mais importante é a divisão constitucional de poderes, quando o Executivo depende cada vez menos do Legislativo para usar o dinheiro dos contribuintes.
Em termos institucionais, essa é a inovação mais importante incluída no projeto da LDO. Mas a proposta contém algumas novidades potencialmente relevantes do ponto de vista econômico. Segundo o documento enviado ao Congresso, o governo federal terá uma receita primária (não financeira) equivalente a 24,33% do PIB em cada um dos próximos três anos. A de 2009 será ligeiramente superior à projeção revista de 2008 (24,21%), mas a proporção ficará constante a partir do ano seguinte. Em outras palavras, a carga tributária federal deixará de aumentar. Também a despesa primária será constante e equivalerá a 22,13% do PIB. Isso garantirá, em cada um dos três anos, um superávit primário de 2,2% para o governo central.
O ideal seria uma redução da carga de impostos e contribuições, mas a mera manutenção já será um resultado notável, pois a tendência observada há muitos anos tem sido a de aumento continuado. Há muito tempo os gastos públicos têm crescido mais que o valor da produção brasileira, e isso tem sido possibilitado por um aumento ininterrupto e muito sensível da tributação.
Somando-se o desempenho das estatais ao do governo central obtém-se o resultado primário projetado para o governo federal: 2,85% do PIB em 2009, 2010 e 2011. Incluindo-se na conta os juros pagos pelo Tesouro, chega-se ao resultado nominal: haverá um déficit de 0,28% do PIB no próximo ano e superávits de 0,22% e 0,77% em 2010 e 2011, porque o peso dos juros diminuirá. Tudo isso parece, por enquanto, uma bela ficção aritmética. Nenhum dado prático autoriza o cidadão a imaginar a combinação de orçamento equilibrado e carga tributária constante, num prazo de dois anos.