Título: 200 anos de Judiciário independente
Autor: Maciel, Marco
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2008, Espaço Aberto, p. A2

Há pouco mais de seis meses, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Ellen Gracie, comemorando o segundo centenário do Poder Judiciário independente de nosso país, iniciava a distribuição dos primeiros recursos extraordinários eletrônicos e via o ato 'como sinônimo de rompimento com o passado e o início de uma fase de eficiência'. Anotava, também, que, desde os tempos coloniais, o padre Antônio Vieira já se revoltara contra a ineficiência da prestação jurisdicional.

A propósito, quase 400 anos atrás, em sermão na Capela Real de Portugal, Vieira, o 'imperador da língua portuguesa', como o cognominou Fernando Pessoa, chamava a atenção para a circunstância de que, na República hebréia - e em muitas outras -, os tribunais e os ministros estavam às portas da cidade: 'Antigamente estavam os ministros às portas das cidades; agora estão as cidades às portas dos ministros. (...) Aqueles ministros, ainda quando despachavam mal os requerentes, faziam-lhes três mercês. Poupavam-lhes o tempo, poupavam-lhes o dinheiro, poupavam-lhes as passadas. Os nossos ministros, ainda quando vos despacham bem, fazem-vos os mesmos três danos. O do dinheiro, porque o gastais; o do tempo, porque o perdeis; o das passadas, porque as multiplicais.'

Ao fazer memória da data inaugural do Poder Judiciário independente no Brasil, é inevitável reconhecer no rei dom João VI haver ele aqui concebido e executado um projeto de Estado. Também não podemos deixar de gizar a instalação dos cursos jurídicos em Olinda e em São Paulo, por lei de 11 de agosto de 1827, resultante de projeto do visconde de São Leopoldo.

'Pela educação jurídica é que se imprimem', segundo San Tiago Dantas, 'no comportamento social, os hábitos, as reações espontâneas, os elementos coativos, que orientam as atividades de todas as grandes aspirações comuns.' Nas referidas faculdades se forjou a maioria dos estadistas do Império que tanto serviram aos três Poderes e às demais instituições do País.

Destaque-se nesse travejamento inicial do Estado brasileiro, entre outras providências indispensáveis, a fundação da Casa de Suplicação do Brasil, em 1808, para substituir a Casa de Suplicação de Lisboa, instância final do julgamento dos processos judiciários. Ademais, como é consabido, o Supremo Tribunal de Justiça, previsto já na Constituição imperial brasileira, era a ampliação das competências da Casa de Suplicação.

É oportuno referir, porém, que, mesmo antes da promulgação da Constituição de 1891, o Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, baixado por Deodoro da Fonseca, na ocasião chefe do governo provisório dos Estados Unidos do Brasil, já estabelecera que o Superior Tribunal de Justiça deveria intitular-se Supremo Tribunal Federal.

Cabe salientar que a divisão tripartite de Poderes idealizada por Montesquieu, às vésperas da Revolução Francesa, somente começou a ser plenamente aplicada a partir da decisão Marbury versus Madison, em 1803, quando John Marshall era presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos. Por ele foi consagrado o princípio da precedência dela na interpretação constitucional das leis votadas pelo Legislativo e aplicadas pelo Executivo.

Não foi por outra razão que o imperador dom Pedro II, em julho de 1889, poucos meses antes da Proclamação da República, designou Salvador de Mendonça para cumprir missão oficial nos Estados Unidos, com a recomendação: 'Estudem com todo o cuidado a organização do Supremo Tribunal de Justiça de Washington. Creio que nas funções da Corte Suprema está o segredo do bom funcionamento da Constituição norte-americana. (...) Dêem toda a atenção a este ponto', conforme assevera Leda Boechat Rodrigues em seu livro História do Supremo Tribunal Federal.

A República atendeu a essa aspiração de Pedro II ao adotar o modelo norte-americano de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. E se viu, mais tarde, em nosso evoluir histórico, a ampliação desse controle numa extensão que não é acompanhada por muitos outros países.

A primeira manifestação extensiva - e por que não igualmente intensiva - das competências do STF foi na proteção dos direitos individuais e liberdades públicas. Responsável pelo equilíbrio dos Poderes constitucionais e pela coerência interna da legislação vigente, permaneceu fiel à defesa da democracia e o demonstrou ao conceder habeas-corpus e mandados de segurança nas mais agudas crises de nossa História republicana.

Hodiernamente, compete ao STF, de forma precípua, a guarda da Constituição. Entre as suas principais prerrogativas está a de julgar a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) decorrente da própria Constituição, ambas concebidas pelo ministro Gilmar Mendes, e a extradição solicitada por Estado estrangeiro. E, na área penal, a competência para julgar, na hipótese de infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente da República, os membros do Congresso Nacional, os ministros de Estado e o procurador-geral da República, entre outros.

Mais do que fazer memória daquilo que fica do que passou, é oportuno celebrar também o papel que a Justiça brasileira vem oferecendo à preservação da harmonia e do equilíbrio entre os Poderes, além de seu zelo pela guarda da Constituição em seus preceitos fundantes dos valores essenciais que consolidam o autêntico Estado Democrático de Direito estatuído na Lei Maior de 1988, para que as instituições nacionais se enraízem no sentimento cívico do povo brasileiro.

Marco Maciel, senador, é membro da Academia Brasileira de Letras