Título: Incentivos culturais
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2008, Notas e Informações, p. A3

Depois de ter conseguido evitar, no ano passado, que fossem concedidos incentivos fiscais ao esporte em detrimento dos concedidos ao setor cultural, a classe artística voltou a Brasília, desta vez para entregar ao Senado dois anteprojetos com o objetivo de ampliar o repasse de recursos públicos para a montagem de espetáculos teatrais. A classe artística reclama que, por causa da farta distribuição de carteiras de estudante, dos valores cobrados pelos teatros privados e da falta de equipamentos mais modernos nos teatros públicos, as temporadas têm sido cada vez mais curtas e os prejuízos, cada vez mais altos. Atores, diretores e produtores também alegam que os recursos propiciados pela Lei Rouanet, no valor de R$ 1 bilhão anual, são insuficientes para atender às demandas do setor cultural.

Elaborado pela Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro, sob a justificativa de que o País precisa de um marco regulatório para a 'economia teatral', o primeiro anteprojeto institui a Lei do Teatro, prevê a criação de uma Secretaria Nacional de Teatro, mantém a Lei Rouanet, que está em vigor desde 1991, e propõe mais incentivos fiscais para os produtores teatrais. Elaborado pelo Redemoinho, movimento que agrega 70 grupos teatrais de diferentes Estados, o segundo anteprojeto institui uma Lei de Fomento, estabelece novas fontes de financiamento para o setor teatral e introduz alíquotas diferenciadas por regiões no sistema de incentivos fiscais. Sob a justificativa de que 'o Executivo deve estar a serviço da arte e da cultura e que estas devem estar a serviço da sociedade e não a serviço de cada governo', a proposta prevê a concessão de R$ 70,5 milhões por ano para 445 projetos culturais, além de R$ 1,5 milhão para a Funarte, que seria encarregada de implementar o programa.

Trata-se, como se vê, de mais uma tentativa de aumentar os recursos de um sistema que, idealizado para estimular com subsídios a produção cultural, tem servido também para eliminar os riscos inerentes à atividade de empresários do setor de entretenimento. Não custa lembrar que tais incentivos decorrem de renúncia fiscal, ou seja, são pagos por toda a sociedade e não apenas pelas empresas patrocinadoras.

Atores, diretores e produtores têm razão quando lembram que a distribuição dos incentivos se dá por critérios pouco transparentes. Mas a questão central não é essa. Mesmo que a distribuição fosse mais eqüitativa, o problema é saber até que ponto o Estado tem de se envolver nesse tipo de atividade e quais as contrapartidas que deve exigir dos grupos artísticos beneficiados por incentivos e patrocínio com recursos públicos.

O produtor cultural Yacoff Sarkovas definiu a questão em artigo recentemente publicado no Estado. 'Vamos imaginar que os médicos também reivindiquem lugar à mesa para investir um naco do imposto na saúde pública, a seu critério; os educadores, para manter abertas as escolas públicas; as empresas de transporte, para criar estradas exclusivas; e - por que não? - cada cidadão, para reter outro tanto do imposto para montar o próprio esquema de segurança. Antes que a mesa estivesse cheia, não haveria mais imposto a recolher', diz Sarkovas. 'Iludidos pela perspectiva de injetar recursos no seu campo de atividades, artistas lutam para propagar o câncer do incentivo fiscal, em vez de exigir políticas e fundos de financiamento direto do Estado, regidos por critérios técnicos e públicos', conclui.

Na realidade, a atuação do Estado no setor cultural deve se circunscrever à definição de prioridades e ao financiamento de atividades com relevância artística e cultural, que atendam aos interesses maiores da sociedade e não aos interesses empresariais de artistas, produtores e diretores. Do modo como está organizado, o sistema de incentivos fiscais no setor cultural se converteu num jogo que favorece o marketing das grandes empresas e grupos artísticos com capacidade de mobilização política ou vinculados às grandes redes de televisão. Por isso, em vez de aprofundar esse sistema, melhor seria rever o modelo adotado, redefinindo o papel do Estado no campo da cultura e as fontes de financiamento do setor.