Título: A fúria dos pobres
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/04/2008, Economia, p. B4

Por todo o mundo, a elevação dos preços dos alimentos tornou gêneros de primeira necessidade como arroz e milho inacessíveis a muitas pessoas, empurrando os pobres para as barricadas porque eles não têm mais comida suficiente. Mas o pior está por vir.

Fort Dimanche, uma antiga prisão nas colinas que se erguem acima da capital haitiana de Porto Príncipe, é um inferno na terra. No passado, ela abrigou as câmaras de tortura dos esquadrões da morte do ex-ditador Baby Doc Duvalier, os Tontons Macoutes. Hoje, milhares de haitianos vivem nas dependências da prisão, revolvendo pilhas de lixo atrás de alimentos. Mas até os cães encontram pouca coisa de comer ali.

Sobre o telhado da antiga prisão, mulheres empreendedoras preparam umas coisas que parecem biscoitos e até são chamadas por esse nome. O ingrediente principal, argila amarela, é trazido de caminhão das montanhas próximas. A argila é misturada com sal e gordura vegetal para fazer uma massa, que depois é secada ao sol.

Para muitos haitianos, os biscoitos de terra são a sua única comida. Eles têm gosto de gordura, absorvem a umidade da boca e deixam um gosto de terra. Freqüentemente, causam diarréia, mas ajudam a entorpecer as dores da fome. ¿Espero ter algum dia comida suficiente para comer e poder parar de comer essa coisa¿, disse Marie Noël, que sobrevive com seus sete filhos graças às tortas de terra, à Associated Press.

A argila para fabricar 100 biscoitos subiu de U$ 1,50 para U$ 5, ou cerca de 40%, em um ano. O mesmo vale para os alimentos básicos. Mas a mesma quantidade de dinheiro compra mais tortas de barro que pão ou tortillas de milho. O preço de uma tigela diária de arroz é praticamente inviável. A escassez de alimentos provocou revoltas no Haiti na semana passada.

Uma multidão de cidadãos famintos marchou por Porto Príncipe, atirando pedras e garrafas, e gritando ¿Temos fome!¿ diante do palácio presidencial. Pneus foram queimados e pessoas morreram. Foi mais uma das rebeliões que estão começando a ocorrer com crescente freqüência em escala mundial, mas são apenas um começo do que está por vir.

O alimento está se tornando cada vez mais escasso e caro, e já é inacessível para muitas pessoas. Essa calamidade é ¿uma das piores violações da dignidade humana¿, diz o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan.

Deveria nos espantar que o desespero às vezes se transforme em violência?

A crise dos alimentos aflige os pobres do mundo - na África, sul da Ásia e Oriente Médio. Os preços de gêneros como arroz, milho e trigo, que ficaram relativamente estáveis por anos, dispararam em mais de 180% nos últimos três anos. Está se formando um gargalo cujas conseqüências são potencialmente mais graves que a crise global dos mercados financeiros. Sem nada a perder, pessoas à beira da inanição estão cada vez mais propensas a reagir com uma fúria incontrolável.

A crise está ajudando a fortalecer movimentos radicais islâmicos no norte da África. Nas últimas semanas, houve tumultos na Mauritânia, Moçambique, Senegal, Costa do Marfim e Camarões.

Com tantas pessoas e sem terra agrícola suficiente, a luta pela distribuição das melhores terras está tomando uma forma que poderá levar a um novo conflito Norte-Sul. Os mexicanos foram os primeiros a ganhar as ruas quando protestaram contra a alta dos preços da farinha de milho, ingrediente básico para tortillas. Para evitar novos protestos, o presidente mexicano, Felipe Calderón, decidiu aumentar os subsídios do governo ao milho, que já eram altos. Em outros países, como Haiti, Bolívia, Argélia e Iêmen, as classes baixas têm sido duramente atingidas pela inflação dos preços dos alimentos.

No Iêmen, país do Oriente Médio, pessoas sobrevivem com uma média de U$ 1,86 por dia. No último trimestre, os preços dos alimentos subiram 145% no Líbano e 20% na Síria. ¿Até a salsa, pela qual nós pagávamos uma bagatela no passado, de repente triplicou de preço¿, queixa-se uma moradora da capital da Síria, Damasco.

Iraque e Sudão, que já foram as ¿cestas de pão¿ do mundo árabe, hoje dependem do Programa Mundial de Alimentos. A guerra civil no Sudão deixou mais de 2 milhões de pessoas em campos de refugiados absolutamente dependentes de ajuda alimentar.

Países em desenvolvimento enfrentaram um desafio semelhante há mais de uma geração, o que levou ao advento da chamada Revolução Verde.

Mediante o uso de fertilizantes, pesticidas e sementes híbridas, produtores rurais de países em desenvolvimento conseguiram melhorar consideravelmente suas colheitas. Alguns agora acreditam que é hora de lançar uma segunda revolução verde. Os chefes de pesquisa de conglomerados agrícolas estão convencidos de que a engenharia genética pode ser a resposta para os problemas alimentares do mundo. Mas a questão é: quanto tempo isso levaria?

A escassez de alimentos se tornou uma questão também em regiões afluentes, como Dubai, onde supermercados prometeram não aumentar os preços de 20 gêneros alimentícios básicos por um ano. O objetivo é evitar a insatisfação das legiões de trabalhadores da construção civil, indianos e paquistaneses, na cidade.Sem eles, não existiriam os enormes hotéis, museus e ilhas artificiais com os quais Dubai está causando tanto frisson no mundo.

Os beneficiários da globalização no Golfo Pérsico não querem enfrentar tumultos à sombra dos arranha-céus e shopping centers. ¿As conseqüências da insatisfação e do ódio no Oriente Médio podem ser mais geopolíticas que em outros lugares¿, disse Robin Lodge do Programa Mundial de Alimentos da ONU à agência noticiosa Reuters. Isso é particularmente verdadeiro no Egito.

Saad Ibrahim possui um pequeno restaurante no Cairo. Ele vende pratos como talharim e grão-de-bico em molho de tomate. ¿A cada dia tenho menos fregueses¿, diz Ibrahim.

No fim do ano passado, uma tonelada de talharim custava cerca de 1.500 libras egípcias, ou pouco mais U$ 276. De lá para cá, os preços triplicaram. Ibrahim culpa o governo pela alta dos preços. ¿Como um país agrícola¿, diz ele, ¿poderíamos cultivar de tudo em vez de importar por muito dinheiro.¿ Trinta e dois milhões de uma população egípcia de 80 milhões sobrevivem com U$ 1,58 por dia e 16 milhões com ainda menos. A inflação saltou para mais de 12% em fevereiro.

¿Aish baladi¿, um pão redondo e mole, é um sustentáculo importante da dieta egípcia. O Estado o subsidiou durante décadas, o que ajudou a preservar a calma. Mas, por quanto tempo ainda esse sistema pode funcionar? As filas estão aumentando na frente das padarias que vendem o pão subsidiado porque um número crescente de egípcios passou a depender de ajuda do governo. Os tumultos nas últimas semanas reclamaram pelo menos 11 vidas depois que padeiros corruptos venderam farinha barata, subsidiada, por altos preços no mercado negro, provocando uma resposta irada do público.

Enquanto isso, o governo cortou U$ 2,5 bilhões de seu novo orçamento para subsídios ao pão. Mas fornecer pão barato traz suas próprias conseqüências bizarras. Alguns produtores agrícolas já estão dando pão para seu gado por causa do custo exorbitante da ração animal.

Criar gado é um negócio lucrativo porque as rendas crescentes em alguns países em desenvolvimento significam que cada vez mais consumidores podem comer carne. A nova classe média em Nova Délhi e Pequim já não se satisfaz com dietas tradicionais ricas em alimentos como arroz e lentilha. Mas são necessários sete quilos de ração e vastas quantidades de água para produzir um simples quilo de carne bovina, o que faz os preços subirem.

Na Jordânia, que tem um sistema moderno de agricultura, o custo de gêneros de primeira necessidade subiu 60% em um ano. ¿Mal consigo vender meus legumes¿, diz Hussein Bureidi, um vendedor que opera um estande perto da Grande Mesquita na capital jordaniana, Aman. ¿Como isso vai continuar?¿ O rei Abdala II, da Jordânia, teme um retorno dos tumultos de 1966, quando cidadãos famintos se chocaram com a polícia na cidade de Karak.

Na Argélia, os preços da banha de cozinha, óleo de milho, açúcar e farinha dobraram em seis meses. Com exceção de um aumento insuficiente de 15% nos salários do funcionalismo público, o governo tem feito pouco para impedir o que a Rádio Argel chamou de ¿ataque a nosso padrão de vida¿.

Até agora, as receitas de petróleo e gás não foram usadas para financiar subsídios adicionais aos alimentos. Se o fizesse, o governo poderia ficar impossibilitado de pagar os juros da dívida externa.

Mas é a Índia que possui o maior número de pessoas subnutridas, cerca de 220 milhões. Convenientemente, duas conferências sobre a crise dos alimentos foram realizadas em Nova Délhi na semana passada. Jacques Diouf, o presidente senegalês da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), atribuiu o dilema ao rápido crescimento da demanda na China e na Índia. A crise, disse Diouf, poderá se expandir para uma catástrofe sem precedentes.

A China tem quase um quarto da população mundial para alimentar, mas apenas 7% de suas terras cultiváveis. Uma situação similar se aplica à Índia. Os dois países precisam importar alimentos em larga escala, o que leva muitos países exportadores a impor cotas de exportação para que seus próprios cidadãos não sejam subitamente privados deles.

Quando os pobres famintos do Haiti se revoltaram com violência na semana passada, os Estados Unidos fecharam sua embaixada no país por precaução. Os incidentes também alarmaram o primeiro-ministro britânico Gordon Brown, que escreveu uma carta a seu colega japonês, Yasuo Fukuda, atual presidente do Grupo dos 8. Na carta, Brown recomendou que a comunidade internacional se empenhe para preparar ¿uma resposta totalmente coordenada¿ à fome crescente.

Ela não viria tão cedo.

* Artigo escrito pela equipe da revista: Rüdiger Falksohn, Amira El Ahl, Jens Glüsing, Alexander Jung, Padma Rao, Thilo Thielke, Volkhard Windfuhr e Bernhard Zand