Título: A saúde pública exige respeito
Autor: Montone, Januario
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/04/2008, Espaço Aberto, p. A2

O Senado Federal aprovou na noite de 9/4 a regulamentação da Emenda 29, que vincula recursos para a saúde pública. Aprovou daquela maneira bem brasileira. Alterou, para melhor, o texto que recebeu da Câmara dos Deputados. E o alterou sem nenhum indício de apoio do governo. O projeto volta para a Câmara para ser rediscutido. Enquanto isso, nada acontece. Nada de novo, ou seja, a saúde pública continua a perder R$ 5,7 bilhões por ano, de Estados e municípios que não cumprem a vinculação, e o governo federal continua a reduzir o orçamento do Ministério da Saúde, que já foi de 8,1% das receitas correntes e hoje não chega a 7%.

Os líderes governistas na Câmara elogiam a mudança, mas reclamam que os senadores não indicaram a fonte dos recursos adicionais. E voltamos ao falso debate que cercou o fim da CPMF: a saúde precisa de um imposto específico para garantir o seu funcionamento. Não é verdade. O fato é que a saúde precisa é de mais recursos, além de precisar de mais, muito mais gestão.

O que garantiu os recursos para a saúde pública brasileira, a partir de 2000, não foi a CPMF. Foi e é a Emenda 29, que obriga a União, os Estados e municípios a destinar parcelas definidas de suas receitas à saúde - da soma de suas receitas, e não de um ou outro imposto, mesmo a CPMF, originalmente criada com a destinação exclusiva para a saúde.

A regulamentação provisória da Emenda 29 expirou em 2004, muito antes da CPMF. A definitiva vem sendo adiada sistematicamente. A Emenda 29 ainda vale graças ao entendimento dos tribunais, que a consideram vigente até que a definitiva seja votada. Mas a insegurança jurídica agrava suas falhas de origem e enfraquece o poder de fiscalização. São muitos os Estados e municípios que não aplicam os porcentuais obrigatórios e são muitos os que somam como despesas em saúde gastos de outras áreas.

A proposta aprovada na Câmara repetiu a regulamentação provisória, obrigando o governo federal a garantir o orçamento do ano anterior acrescido da variação nominal do produto interno bruto (PIB); os Estados, 12% de suas receitas; e os municípios, 15%. Independentemente da fonte de recursos. O avanço mais importante é que também passou a definir claramente o que é e, principalmente, o que não é gasto em saúde. Só isso aumentaria em R$ 5,7 bilhões os recursos anuais do setor.

O Senado alterou a proposta vinculando 10% das receitas correntes da União para a saúde, de forma progressiva, começando com 8,5% este ano e crescendo 0,5% ao ano até atingir os 10% a partir de 2011.

A proposta tem todos os méritos, principalmente porque a regulamentação atual tem permitido ao governo federal reduzir progressivamente os recursos da saúde, que partiram de 8,1% da receita corrente em 2000 e hoje estão abaixo dos 7%. Para uma receita corrente estimada em R$ 705 bilhões este ano, só a retomada dos patamares de 2000 representaria quase R$ 10 bilhões a mais no orçamento de 2008. O aumento do valor nominal do orçamento apenas mascara essa redução do investimento real.

Estados e municípios, no conjunto, fizeram a sua parte depois da regulamentação provisória, em 2000. Tanto que a participação do Ministério da Saúde nos gastos públicos nacionais em saúde caíram de 60% em 2000 para 50% em 2004. O texto aprovado no Senado corrige essa distorção.

Ótimo, mas há o risco evidente de que o resultado real seja nulo, diante da aparente surpresa do governo com a aprovação do projeto, que vem de sua base.

Melhor teria feito o Senado, talvez, aprovando a regulamentação vinda da Câmara como estava, permitindo uma posterior concentração de esforços políticos na ampliação dos recursos federais alocados para o setor. A fórmula de consenso poderia ser a mesma da regulamentação provisória, ou seja, estabelecer aumento real de 5% sobre o orçamento-base do Ministério da Saúde, a ser revisto anualmente pela variação nominal do PIB.

Não o fez e de novo a saúde estará no centro do debate tributário, que não lhe diz respeito. A regulamentação da Emenda 29 já foi usada como veículo para o PAC da Saúde e para a tentativa de prorrogação da CPMF, cuja não-aprovação seria o apocalipse. Não foi.

Deputados bradavam que a regulamentação estava nas mão dos senadores. Não está mais. Eles a devolveram aos deputados, alterando o projeto. Se a Câmara fizer qualquer mudança, começa tudo de novo e a sangria de recursos para a saúde vai continuar.

O Estado de São Paulo, o segundo maior orçamento em saúde no Brasil, aplica os 12% previstos pela Emenda 29. A cidade de São Paulo, que é o terceiro maior orçamento, aplica mais do que os 15% exigidos - bem mais, aliás - e 70% dos gastos totais em saúde da capital vêm do Tesouro Municipal, diretamente.

A Prefeitura tem transformado a maior eficiência de arrecadação e de gestão em mais recursos líquidos para a saúde. Dois novos hospitais, cem unidades de Assistência Médica Ambulatorial, as AMAs, com capacidade de atender 1 milhão de pessoas por mês, e a distribuição gratuita de medicamentos, atingindo 1,4 milhão de receitas/mês, são apenas alguns exemplos dos resultados.

A regulamentação da emenda pode contribuir para que não haja uma redução ainda maior do orçamento do Ministério da Saúde, protegendo-o, o quanto for possível, das paixões da luta política. Independentemente da posição adotada quando da discussão da CPMF, os gestores do SUS e suas principais entidades, os Conselhos de Secretários Estaduais e Municipais de Saúde, devem exigir que a regulamentação da Emenda 29 seja aprovada pelo Congresso sem novos shows pirotécnicos.

Creio que esse é o debate essencial. Para a saúde dos brasileiros.

Januario Montone é secretário municipal de Saúde de São Paulo

Links Patrocinados