Título: A carta racial contra Obama
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/05/2008, Notas e Informações, p. A3

Quando começou a disputa pela indicação do Partido Democrata à Casa Branca, na eleição de novembro deste ano, comentou-se que o senador Barack Obama talvez não devesse dar por líquido e certo o apoio dos influentes ativistas partidários ligados ao movimento negro, cujas afinidades com a senadora Hillary Clinton e, sobretudo, com o ex-presidente, seu marido, são conhecidas. Parcelas daqueles não veriam Obama necessariamente como um dos seus, embora ele tivesse entrado para a vida pública trabalhando com setores da comunidade negra de Chicago. De fato, além de ter mãe branca e pai que não descendia de escravos, era apenas criança à época da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, nos anos 1960; na política, nunca pretendeu ser herdeiro dessa tradição, defendendo, ao invés, uma agenda pós-racial, de frente comum por mais empregos e políticas progressistas de saúde e educação.

Em questão de meses, no entanto, a irrupção dessa figura singular na cena americana - desencadeando a chamada obamania - tornou subitamente obsoletas tais especulações. O mestiço Obama foi adotado pela quase unanimidade do eleitorado negro (e por multidões de jovens brancos que se engajaram na sua campanha em ascensão). Mas o senador não ficaria imune à servidão da raça - ou melhor, à persistência do racismo branco e do contra-racismo negro. Em começo de março, os americanos foram estrepitosamente informados de que o seu conselheiro espiritual e amigo próximo, reverendo Jeremiah Wright - que o levou para a religião, celebrou o seu casamento, batizou as suas filhas, abençoou a sua casa e usou do seu formidável prestígio entre os negros de Chicago para promover o pupilo -, pedia em seus sermões, entre outras alucinações, que Deus ¿danasse a América¿.

A resposta de Obama pareceu confirmar a imagem de excepcionalidade que o envolve. Numa alocução de meia hora, tratou da chaga racial dos Estados Unidos com uma profundidade sem precedentes para um político - em público -, atacou o racismo reverso do seu pastor, mas se recusou a renegá-lo, assim como não poderia, comparou, renegar a sua avó materna, que o chocava com as suas ofensas aos negros. O pronunciamento, agora se vê, foi antes um sucesso de crítica do que de público. Há pouco, o pastor voltou inexplicavelmente à cena, em sucessivas aparições para a mídia, reiterando o seu ódio à América branca. A julgar pela repercussão das declarações, foi como se o candidato as tivesse feito. Seguiu-se um verdadeiro massacre. Os republicanos, por exemplo, puseram no ar um anúncio com as palavras de Wright e imagens do candidato.

Um irado Obama precisou interromper a campanha na Carolina do Norte para repudiar inequivocamente as infâmias e romper de vez com o seu autor. De todo modo, o caso o atingiu numa conjuntura já de si desfavorável. Na semana passada, a rival Hillary Clinton o derrotou na prévia da Filadélfia por quase 10 pontos porcentuais. Na aritmética das primárias, isso não diminuiu a sua vantagem em número de delegados à convenção do partido. Mas o resultado permitiu à adversária insistir em que ele não leva chance nos Estados mais populosos, o fiel da balança da eleição presidencial. Isso porque, diferentemente dela, é rejeitado pelos trabalhadores brancos de baixa renda e instrução, que podem votar com os democratas, mas são culturalmente conservadores, ao contrário do ¿elitista¿ Obama.

A rejeição é real, porém a sua causa mais profunda decerto é a cor da pele do candidato. Para esses eleitores, antes uma mulher, apesar de tudo, na Casa Branca do que um negro. As próprias cobranças a Obama, no episódio Wright, são reveladoras. ¿Afro-americanos preeminentes são regularmente instados a explicar ou repudiar o que outros afro-americanos têm a dizer¿, apontou o New York Times em editorial. ¿Mas as figuras públicas brancas, raramente, se é que alguma vez, se impõe esse fardo.¿ O jornal vai além. Ao elogiar a atitude de Obama, reflete: ¿Gostaríamos de dizer que isso finalmente removerá a carta racial desta campanha.¿ Para emendar: ¿Não somos tão ingênuos assim.¿

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