Título: A política de massas e a sucessão
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2008, Notas e Informações, p. A3

O senador petista Aloizio Mercadante, citado pela colunista Dora Kramer, deste jornal, ofereceu semanas atrás uma explicação arguta para o que se pode chamar apropriadamente o autodesterro do presidente Lula, mais encontradiço em qualquer lugar do País ou do exterior do que no seu domicílio atual - Palácio do Planalto, Praça dos Três Poderes, Brasília, DF. Disse o senador: ¿O governo está fraco no Parlamento e na imprensa, onde a pauta da oposição tem hegemonia. Se ele ficar em Brasília, dentro do Palácio, torna-se refém dessa agenda. Então, ele sai para disputar e faz a pauta do povo que quer ouvir falar de obras, de energia, de coisas concretas. O povo é situacionista.¿ Naturalmente, Lula só pode ir ao encontro do povo porque, na sua gestão, a vida do povo melhorou - na versão do presidente, graças a ele, ¿mais uma mãozinha de Deus¿.

É bem verdade que ele não toma o tempo de suas jubilosas platéias explicando, do palanque, o que vem a ser esse efeito Maradona: o superaquecimento da economia mundial, puxado pela China, coincidindo com a sua presidência. E não explica, decerto, para não complicar à toa o que ele faz parecer tão simples: a bonança é conseqüência do ineditismo de ¿governar para os pobres¿. Assim, entregue em regime de dedicação praticamente integral ao doce mister de proclamar que ¿nunca antes na história deste país¿¿, Lula parte da percepção popular, baseada em experiência própria, de que as coisas melhoraram, para assentar na consciência nacional a convicção de que ele é o responsável único por isso. Ele - não o PT, nem os seus aliados, nem qualquer de seus ministros (com a recente exceção da titular da Casa Civil, Dilma Rousseff, a mãe do PAC, em fase de testes pré-eleitorais).

Com o imenso talento persuasivo que seria bisonho negar-lhe, Lula reintroduziu na cena brasileira, depois de décadas, a política de massas. Nela, o líder afasta dos olhos da multidão o papel do sistema político que o produziu e do qual é o primeiro protagonista; o papel da administração pública de que ele depende; e o papel até mesmo das instituições que o enquadram - a fim de estabelecer uma relação direta e superior a tudo o mais com os seus liderados. Esses são requisitos para que o líder possa se arrogar, não compartilhando com ninguém nem nada, o mérito pelas políticas que mudaram as condições de vida da maioria da população. Claro que o carisma também é essencial, e Lula o tem de sobra, bem como a singularidade, em relação aos populistas do passado, de ser ele um do povo, portanto, ainda mais confiável e querido. Eis aí a história por trás dos seus formidáveis índices de aprovação que as pesquisas registram, uma após outra.

¿Lula¿, definiu há pouco o seu mordaz interlocutor Delfim Netto, ¿é um sobrevivente, o Darwin andando, com uma vantagem: nunca leu Karl Marx.¿ De todo modo, ao fazer política de massas, a pretexto de tocar o PAC, além de se distanciar da adversa agenda planaltina de que fala o senador Mercadante, Lula se instala no centro absoluto da sucessão presidencial. Seja para a eventualidade de passar arriada a montaria da re-reeleição, seja para se afirmar como o Grande Eleitor de 2010. A primeira hipótese parece menos provável. Embora metade da população já se mostre favorável à mudança que traria o terceiro mandato - dando razão a Bertolt Brecht, quando dizia que ¿primeiro vem o rango, depois vem a moral¿ -, continuam incertas as chances de o Congresso aprovar, em duas votações com quórum de 60%, a emenda constitucional do continuísmo. E Lula soa convincente nas suas seguidas manifestações de recusa ao golpe.

A construção do presidente-eleitor é ostensiva - mesmo no apelo, que faz com divertida malícia, para que os políticos dissociem os eventos do PAC da sucessão. ¿Não pode ter um clima eleitoral porque daqui a pouco a Justiça Eleitoral pensa que eu estou fazendo campanha¿, avisou dias atrás num comício. Mas a obra se deixa ver em especial quando ele bate na tecla do risco do ¿retrocesso¿, contra o qual pede a Deus que o sucessor seja ¿uma pessoa até mais abençoada do que eu, que olhe para os pobres mais do que nós estamos olhando¿. A aposta de Lula é a de que, tendo anunciado o nome da pessoa abençoada, o povo nela votará como se votasse nele próprio.