Título: BC e Fazenda seguem rumos opostos
Autor: Chiara, Marcia de
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/05/2008, Economia, p. B5

Eduardo Giannetti da Fonseca: economista e professor do Ibmec - `A área econômica me dá a impressão de um cérebro com dois hemisférios desconectados, cada um falando uma língua¿

O presidente Lula passa hoje pelo terceiro teste no combate à inflação. Em meio a uma clara divisão entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central (BC), Lula não consegue harmonizar as duas instâncias do governo. Isso pode colocar em risco a estabilidade da economia e provocar uma elevação exagerada da taxa básica de juros para segurar os preços. Isso não aconteceria se houvesse sintonia entre a Fazenda e o BC. A avaliação é de Eduardo Giannetti da Fonseca, professor de História do Pensamento Econômico da Faculdade Ibmec São Paulo e doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, da Inglaterra.

Nos dois outros testes antiinflacionários, quando assumiu o governo em 2003 e no fim de 2004, Giannetti diz que o presidente reagiu com enorme pragmatismo e seriedade à ameaça de aceleração inflacionária. ¿Hoje a área econômica do governo me dá a impressão de um cérebro com dois hemisférios desconectados, cada um falando uma língua.¿ A seguir trechos da entrevista.

Qual é a relação que o sr. faz da inflação de hoje com a inflação do passado?

Esse surto de inflação que o País viveu da época de Juscelino (Kubitschek) até o final do regime militar foi debelado com o Plano Real. Nós consumimos a maior parte dos anos 80 num período que eu chamo de planos de estabilização fracassados. Foi uma década perdida na tentativa de debelar a inflação.

E agora?

O governo Lula no primeiro mandato foi testado de maneira muito contundente em seu compromisso antiinflacionário em duas ocasiões. A primeira foi logo que assumiu, em 2003. E a segunda depois do surto de crescimento, da recuperação cíclica vivida pelo Brasil ao longo de 2004. Tanto no momento em que assumiu quanto ao final de 2004, o governo Lula reagiu com enorme pragmatismo e seriedade à ameaça de aceleração inflacionária. De que modo? Dando ao BC total autonomia para usar política monetária de forma a conter essa ameaça.

Qual a diferença entre o final de 2004 e o momento atual?

A pressão inflacionária decorre da mesma causa: a capacidade de produção doméstica da economia não cresce no mesmo ritmo da demanda, ou seja, o consumo, o investimento e o gasto público. Esse hiato gera pressão inflacionária. Para diminuir a pressão, é preciso aumentar os juros e reduzir o gasto público.

No primeiro mandato, o Ministério da Fazenda e o BC atuaram na mesma direção. O governo Lula começou o seu mandato aumentando o superávit primário e assumindo o compromisso, que cumpriu, de prudência do lado fiscal. Portanto, a Fazenda e o BC remavam do mesmo lado, contendo a pressão inflacionária pela redução do gasto e pelo aumento do juro. Hoje o contexto é diferente. A área econômica do governo me dá a impressão de um cérebro com dois hemisférios desconectados, cada um falando uma língua. Os sinais vindos da Fazenda são completamente dissociados dos sinais vindos do BC. A política fiscal é expansionista, joga lenha na fogueira. A política monetária tem que ser muito mais contracionista do que precisaria caso estivesse afinada com a política fiscal e industrial. O quadro não é tão inspirador de confiança como se mostrou no primeiro mandato pela clara falta de sintonia.

Isso é muito perigoso em relação ao que se tinha em outras situações inflacionárias, até na época da hiperinflação?

Não, eu acho que nós estamos longe disso ainda. Seria prematuro imaginar que estamos recaindo na ilusão juscelinista ou que estamos ameaçados de reinventar todo o processo de indexação. Acho que não estamos nem ainda remotamente perto disso. Mas vemos uma deterioração da qualidade da política econômica do governo Lula. De um lado, o gasto primário do governo vem se expandindo de maneira consistente: a despesa com pessoal este ano vai aumentar 9% em termos reais e a despesa com Previdência vai crescer 8,1%. Há um claro descompasso entre o crescimento da demanda e a capacidade de oferta.

Mas a inflação de hoje não é importada, como dizem economistas?

A inflação tem um componente importado, não se pode negar. Mas tem um componente de demanda parecido com o que houve em 2004. No fim de 2004, houve um descompasso entre crescimento de consumo e demanda, de um lado, e crescimento da oferta de outro. Em 2004 não teve choque adverso de fora, não teve pressão inflacionária advinda de alimentos, por exemplo. Desta vez, temos pressão de fora, mas não é só isso.

O sr. acha que o que está pesando hoje é mais o descompasso entre oferta e demanda do que a pressão dos alimentos?

Sem dúvida nenhuma. Há uma pressão de demanda generalizada. A coisa começa a ficar preocupante quando a área da Fazenda acha que vai contribuir para a questão reduzindo os impostos incidentes sobre a gasolina ou retirando o PIS/Cofins sobre o trigo importado. Com isso, o governo exacerba mais a demanda.

Por que?

Porque os preços dos produtos não vão subir como deveriam, ficarão artificialmente contidos e a demanda vai continuar aquecida. A mesma preocupação tenho quando vejo exortações ao papel fiscalizador do consumidor em relação aos preços. Isso não funciona em nenhum lugar do mundo. Ameaçam ressuscitar a figura dos fiscais do Sarney. Não há precedentes de políticas antiinflacionárias baseadas na fiscalização da população.

O que o precisa fazer para resolver isso essa questão?

O Lula não está funcionando como um regente de uma orquestra afinada. Ele tem de harmonizar os dois hemisférios (BC e Fazenda), ser o regente. Não é possível ter uma orquestra na qual uma parte toca Beethoven e outra, pagode. Qual é a pauta? Nós queremos ser a Argentina ou um país equilibrado, que aceita algum sacrifício para não recair numa inflação indesejável?

O sr. acha que há risco de volta da memória inflacionária e indexação de preços?

Esse risco sempre há. A sociedade aprendeu a fazer isso e, se a inflação atingir um certo patamar, digamos, se ela chegar a dois dígitos anuais, rapidamente a sociedade retoma as práticas de indexação. Estamos longe da indexação hoje, mas existe uma realidade potencial que pode desencadear a volta desse movimento.

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