Título: As leis e o voluntarismo de Lula
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/05/2008, Notas e Informações, p. A3
Num discurso de improviso feito no lançamento de uma obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o presidente Lula voltou a mostrar que tem dificuldades para conviver com as leis e as instituições, quando elas contrariam seus propósitos. Falando em Salvador, na semana passada, ele investiu contra a Lei Eleitoral, afirmando que ela atrapalha suas viagens pelo País para divulgar o PAC; reclamou do rigor da Lei de Licitações que, segundo ele, dificulta a execução do cronograma de obras do governo; e criticou os órgãos encarregados de zelar pela aplicação desta lei, o Ministério Público Federal e o Tribunal de Contas da União (TCU).
O motivo da irritação de Lula está no fato de que o TCU, cumprindo sua função constitucional, fiscalizou 122 obras do PAC e constatou graves irregularidades em 29, determinando o bloqueio dos recursos orçamentários correspondentes. O TCU embasou suas decisões na Lei de Licitações, aprovada em 1993 com o objetivo de regulamentar as compras governamentais e fechar brechas que permitiam manipulação de concorrências. A lei foi aprovada pelo Congresso como resposta às denúncias de corrupção que marcaram o governo Collor.
A Lei de Licitações tem sido objeto de críticas de alguns governantes, que reclamam de suas exigências especialmente concebidas para evitar malversação de recursos públicos. Em 2007, ao lançar o PAC, o governo enviou ao Congresso um projeto que, sob a justificativa de tornar o processo licitatório mais ágil, abranda o rigor dessa lei.
¿É preciso mudar para facilitar as coisas. A Lei de Licitações não pode continuar do jeito que é porque, aqui no Brasil, se parte do pressuposto de que todo mundo é ladrão¿, disse o presidente, esquecendo-se de que, mesmo com os rigores da Lei de Licitações, a Polícia Federal tem feito sucessivas descobertas de grossa corrupção na máquina estatal. ¿O TCU, na verdade, quase governa o País, porque diz a obra que pode e a obra que não pode ser executada. O Ministério Público detém um poder que lhe demos. Mas nós precisamos ver o que é bom para este país para permitir que as coisas sejam mais ágeis.¿
Há dois meses, discursando em Aracaju, Lula já investira contra o Tribunal Superior Eleitoral, cujo então presidente, Marco Aurélio Mello, havia afirmado que a Lei Eleitoral proíbe o governo de lançar programas assistencialistas em ano eleitoral. ¿Seria tão bom se o Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas dele e o Executivo nas coisas dele. Se cada um ficar no seu galho, o Brasil tem chance de ir em frente. Se cada um der palpite nas coisas do outro, pode conturbar a tranqüilidade que a sociedade espera de nós¿, disse Lula. Em resposta, Marco Aurélio afirmou que, pelo cargo que ocupava, tinha o dever de alertar os governantes para a necessidade de respeitar a ordem jurídica, sob pena de cometerem crime eleitoral. Lula treplicou: ¿Da mesma forma que como seres humanos e brasileiros as pessoas dão palpite sobre as coisas, o presidente da República pode julgar os palpites dos outros.¿
Os argumentos de Lula têm como denominador comum dois pontos preocupantes. O primeiro é a idéia de que as leis dificultam a execução de obras governamentais. O segundo é a idéia, não menos equivocada, de que órgãos de fiscalização exorbitam ao dar ¿palpites¿ sobre decisões do Executivo.
Os ministros do TCU deram uma pronta resposta a Lula. Eles observaram que o voluntarismo do chefe do Executivo não tem vez no Estado de Direito. ¿O TCU cumpre o que determina a legislação. Verifica se as obras estão sendo conduzidas dentro das normas¿, esclareceu o ministro Guilherme Palmeira. ¿O TCU é parte de um modelo constitucional de freios e contrapesos, no qual o exercício do poder é repartido entre órgãos independentes de tal forma que um não pode agir sem ser limitado pelos demais. Temos de aprender a conviver dentro do regime democrático¿, concluiu o ministro Aroldo Cedraz.
O presidente Lula goza, por méritos próprios, dos mais altos índices de popularidade que já teve um governante neste país. Mas, como chefe de Estado, ele tem a obrigação de saber como as instituições funcionam e de respeitar a ordem jurídica. Foi essa lição elementar que os ministros do TCU tentaram lhe ensinar.