Título: Socialização do prejuízo
Autor: Kramer, Dora
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2008, Nacional, p. A6
Olhando de relance, parece completamente incoerente o modo como o governo lida com a questão da CPMF.
No mesmo dia, lança a idéia de ressuscitar o imposto, mas o presidente Luiz Inácio da Silva se recusa a assumir a paternidade da idéia e manda repassar a tarefa ao Congresso, recomendando à sua base um esforço para evitar ¿animosidades¿.
Ato contínuo, Lula discursa para 2 mil prefeitos falando sobre o tema cujo patrocínio acabara de recusar, e o faz em tom bastante animoso contra os senadores responsáveis pela extinção da CPMF no fim do ano passado.
Observando com mais vagar, é possível enxergar absoluta coerência no cenário: o governo quer o imposto perdido de volta, tem noção da impossibilidade da realização desse desejo, mas não perde a oportunidade de tirar dividendos políticos da adversidade.
A cada vez que o presidente lembra às platéias o quanto poderia fazer com o dinheiro perdido, reduz um pouco o tamanho da derrota sofrida no Senado em dezembro.
De tanto repetir que o Brasil está ótimo, mas poderia estar uma maravilha se tivesse mais R$ 40 bilhões em caixa todo ano, Lula acaba conseguindo inverter a ordem dos fatores para públicos dispostos a ouvir. Como o de prefeitos, todo ele aplausos quando o presidente atacou os senadores.
Mas não é só isso. Na atual conjuntura o presidente Lula está precisando de justificativas para reduzir os danos de três vetos impopulares que, tudo indica, terá de fazer a decisões do Congresso: a regulamentação da emenda 29, que aumenta os repasses de verbas para a Saúde, o fim do fator previdenciário e a extensão do reajuste do salário mínimo aos aposentados e pensionistas.
Se tais vetos são desconfortáveis em qualquer situação, em ano eleitoral requerem administração estratégica. Nesse ponto, a CPMF entra na história.
Se o Senado recusar a recriação do imposto, como recusará, Lula atribuirá a essa recusa a necessidade dos vetos, pois - argumento lógico - sem receita adicional não poderá autorizar gastos extras. Resumo da ópera: Lula usa a CPMF para atribuir a outrem a responsabilidade por atos de potencial político oneroso.
Esse ¿outrem¿ é o bode expiatório ideal, dada a longa folha de serviços prestados pelo Poder Legislativo à desmoralização da atividade política.
É a segunda vez que o governo fala na volta da CPMF desde a derrota de dezembro. Ainda em janeiro, a idéia foi publicamente defendida pelo vice-presidente da República, José Alencar, pelo ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e pelo líder do governo na Câmara, Henrique Fontana.
O Palácio do Planalto logo correu para negar - ¿Não podemos ser derrotados duas vezes¿, disse o ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro - e deu à tropa a ordem para recuar.
Fontana ainda tentou uma saída intermediária, dizendo que a base governista incluiria a CPMF na proposta de reforma tributária, e arquivou-se o assunto. Evidentemente, sem CPMF alguma na reforma.
O tema volta agora à cena, desta vez com a quase chancela do Planalto. A Presidência promoveu reunião a respeito e, dela, resultou a decisão do presidente de deixar o Congresso ¿à vontade¿ para aprovar ou não a nova versão do imposto do cheque, com os argumentos velhos de sempre: alíquota reduzida e destinação exclusiva para a Saúde.
Mas se o governo quer mesmo a CPMF de volta, sabe que só terá se patrocinar (em todos os sentidos) a proposta. Mas aí é enorme o risco de levar de novo na cabeça e essa fatura Lula não quer pagar. Quando deixa a coisa nas mãos do Congresso, onde não costuma prosperar o fenômeno da geração espontânea, o presidente tira de caso pensado o corpo fora.
Poderá, assim, transferir a conta do fracasso à incompetência da ¿base¿ e ainda socializar o prejuízo político dos vetos impopulares à sua espera, com o Parlamento em geral e - melhor de tudo - com a oposição de uma maneira muito particular.
Se no palanque já é responsabilizada pela falta das obras presumivelmente financiadas com os R$ 40 bilhões perdidos, será culpada também por ter obrigado o bom presidente a vetar o aumento de verbas para a Saúde, o reajuste dos velhinhos e a redução do limite de idade nos cálculos para fins de aposentadoria.
Imagem e semelhança
O depoimento de José Aparecido Nunes na CPI dos Cartões teria representado um prejuízo de proporções gigantescas se o governo tivesse algum compromisso moral com a verdade, a coerência e a consistência. Como não tem, foi um sucesso.
Decoro
O deputado Carlos William tem todo o direito de defender suas idéias. Mesmo as estapafúrdias, como a permissão de reeleições infinitas para presidentes da República.
Mas agressões ao ouvido alheio, a golpes sucessivos de ¿que sejem¿, como fez ontem na CPI, o deputado Carlos William não tem imunidade parlamentar para cometer.