Título: Os manifestos sobre cotas
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2008, Notas e Informações, p. A3

Três semanas depois de ter recebido um documento contrário à política de cotas raciais, assinado por 113 escritores, líderes sindicais e intelectuais, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, recebeu outro, diametralmente oposto, defendendo a política de inclusão social que o governo quer impor às universidades. Os dois textos foram elaborados para instruir duas ações diretas de inconstitucionalidade contra a política de cotas que tramitam na Corte.

O julgamento está suspenso por causa de um pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa, que prometeu devolver os processos até agosto. Único negro entre os 11 ministros do STF, ele anunciou que pretende apresentar um ¿voto exemplar¿ a favor das cotas.

No documento contrário às cotas, os 113 signatários ressaltam os aspectos legais da questão para evitar que prevaleçam argumentos ¿politicamente corretos¿ em detrimento da Constituição. No artigo 19, a Carta proíbe o poder público de ¿criar distinções entre brasileiros¿. E, no artigo 208, consagra o princípio do mérito, determinando que o ¿acesso aos níveis mais elevados de ensino¿ se dará ¿segundo a capacidade de cada um¿. O documento afirma ainda que, ao abrir caminho para ¿a fabricação de raças oficiais e para a distribuição de privilégios segundo rótulos¿, as cotas ¿inoculam na circulação da sociedade o veneno do racismo¿, pondo em risco a coesão nacional.

No Brasil, diz o documento, onde não se sabe ¿quem é negro e não-negro¿, a imposição das cotas representa uma revisão radical da identidade nacional e a renúncia à universalização da cidadania. ¿A história está repleta de barbaridades inomináveis cometidas sobre a base de carimbos raciais oficialmente impostos. Por certo existe preconceito racial e racismo no país, mas o Brasil não é uma nação racista (...). Há sete décadas, a República não conhece expressões significativas de ódio racial.¿

Assinado por artistas, estudantes, professores e dirigentes de ONGs, o documento a favor das cotas é igualmente extenso, mas menos analítico no conteúdo e mais agressivo no tom. Os 113 signatários do texto anticotas são acusados de ¿hipócritas¿ e de representar ¿uma pequena parte da elite acadêmica branca¿. O documento também afirma que 80 signatários são docentes que recebem financiamentos de agências públicas de fomento à pesquisa e trabalham em universidades privadas ¿que nem sequer participam do esforço pela expansão e democratização do acesso ao ensino superior¿.

Além de transcrever opiniões de juristas favoráveis às cotas, o documento descreve a sociedade brasileira como ¿racista, sexista, homofóbica e excludente¿ e enaltece a atuação do Alto Comissariado das Nações Unidas para a Eliminação do Racismo. ¿Prestar contas do seu passado racista, colonialista e genocida diante dos escravizados e dos povos indígenas originários é uma discussão política que atravessa os cinco continentes e esses 113 querem calar essa discussão no Brasil¿, conclui o texto.

Exageros e imprecisões históricas à parte, não é difícil ver quem está com a razão nessa polêmica. Enquanto os defensores das cotas se preocupam em justificar a adoção de políticas compensatórias e em desqualificar quem não endossa suas opiniões, os críticos das cotas vão ao ponto central da questão. Eles afirmam que o problema da desigualdade social não está na discriminação racial, mas, isto sim, no fracasso da educação pública. Como a rede oficial de ensino básico não oferece educação de qualidade, os segmentos mais pobres da população não têm acesso aos cursos superiores. ¿Apresentadas como maneira de reduzir as desigualdades, as cotas não contribuem para isso, desviando as atenções das urgências sociais e educacionais¿, dizem os adversários das cotas.

O que o STF está julgando é muito mais do que uma discussão sobre critérios de ingresso nas universidades, embalada pelo argumento politicamente correto da democratização do ensino superior. Dependendo do modo como for julgada, essa questão pode acabar ferindo o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, um dos alicerces da democracia, e contribuir para a exacerbação de antagonismos raciais - fenômeno que o Brasil até hoje desconhece.