Título: O último teste de Bush?
Autor: Marconini, Mário
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2008, Espaço Aberto, p. A2

Tornou-se comum nos últimos anos a crítica de que nossa política comercial por vezes é excessivamente guiada por considerações geopolíticas - tal como nos episódios da concessão de status de economia de mercado à China ou da entrada da Venezuela no Mercosul. Críticas nacionais à parte, a verdade é que o comércio, na medida em que se torna internacional, é assunto entre nações - e nações são entes políticos que abrem e fecham portos, aplicam embargos e podem discriminar outras nações por razões as mais diversas. Parte desta constatação, aliás, tem levado a comunidade internacional - mais recentemente, desde, pelo menos, os Tratados de Amizade e Navegação de dois séculos atrás - a buscar regras que estabeleçam um distanciamento entre o comércio e a política.

Em pleno final de governo George W. Bush - que se vai com recordes de impopularidade -, a política comercial norte-americana se depara com um de seus maiores testes. Efetivamente, a administração foi testada muitas vezes em seus dois mandatos e o resultado foi uma política comercial, no mínimo, hesitante em relação aos benefícios do livre-comércio: salvaguardas contra o aço, Farm Bill com subsídios gigantescos, uma lei de "via rápida" (fast track) em muitos aspectos limitada por lobbies protecionistas e, finalmente, uma relutância muito grande a aceitar um nível razoável de liberalização agrícola na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Poder-se-ia supor que o último teste da política comercial de Bush fosse entre livre-cambistas e protecionistas. A divisão poderia ter como objeto a conclusão da OMC ou, ainda mais intensamente, o acordo com a Coréia do Sul. A discórdia, no entanto, é, surpreendentemente, entre sindicalistas (uma versão mais profunda do protecionismo global) e geopolíticos e diz respeito a um acordo cujo comércio corresponde a 0,58% do comércio exterior norte-americano e é quase cinco vezes menor que o da Coréia com os Estados Unidos: trata-se do Acordo de Livre Comércio Estados Unidos-Colômbia.

Geopolíticos têm-se posicionado a favor da aprovação do acordo como forma de conter tendências antiamericanas no continente sul-americano. Já os sindicalistas se opõem ao mesmo acordo apontando para os abusos de paramilitares colombianos em sua guerra contra guerrilheiros e narcotraficantes, assim como para a falta de respeito aos direitos humanos e trabalhistas por parte das autoridades de Bogotá.

De um lado, portanto, a administração Bush, liderada pela própria secretária de Estado, Condoleezza Rice, busca com a Colômbia um dos poucos troféus ainda alcançáveis na esfera internacional (ao lado da Rodada de Doha e da paz no Oriente Médio). De outro lado, um dos mais fortes segmentos de apoio aos candidatos democratas à Presidência - o sindical - mantém posições de princípio que custam a mudar, particularmente em anos eleitorais.

Vale dizer que os democratas não têm escondido o vínculo que estabelecem entre a aprovação do acordo da Colômbia e o Trade Adjustment Assistance (TAA) - programa que visa à assistência para trabalhadores afetados pelas vicissitudes do livre-comércio. Vale dizer também que acordos como o da Colômbia tradicionalmente são objeto de acordo prévio entre o Executivo e o Legislativo - antes que o primeiro o envie ao segundo para apreciação e voto.

O fato de que a administração Bush tenha mandado o acordo ao Congresso (em 8 de abril) sem buscar consenso com as lideranças parlamentares democratas agravou uma situação que já se vislumbrava difícil. A presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, assim como a principal liderança sobre assuntos do comércio no Senado, o senador Max Baucus, reagiram fortemente contra a atitude da administração. De imediato, o trade-off ampliou-se para incluir não apenas o TAA, como também um pacote completo de estímulo econômico. A gravidade da situação não está apenas no nível de desentendimento entre dois partidos num sistema presidencialista, em ano eleitoral. Reside, sim, no efeito deletério que ela representa para a polícia comercial norte-americana - outrora um dos carros-chefe da liderança dos Estados Unidos no mundo.

Ao submeter o acordo ao Congresso sem consenso bipartidário, a administração rompeu com a tradição das "vias rápidas" (fast track authorities), que lograram manter o Legislativo "dentro" das decisões. Ao reagir (em 10 de abril) mudando as regras na Câmara para a apreciação de um acordo de livre-comércio de forma a evitar um voto no Congresso nos 60 dias pós-submissão, a presidente democrata da Câmara, por sua vez, introduziu um perigoso precedente que, por razões conjunturais, muda uma estrutura que sempre funcionou bem - dentro de seus limites. Desde que foram criadas, nunca antes foram alteradas as regras de uma fast track. Desde a Grande Depressão, nunca antes esteve a política comercial norte-americana tão refém do Congresso e de seus caprichos.

E como fica o Brasil nessa fotografia? Concretamente, o Brasil tem em torno de US$ 4 bilhões em exportações ameaçadas no curto e médio prazos. Trata-se do Sistema Geral de Preferências (SGP), que expira de novo em 31 de dezembro de 2008 e cuja renovação se pode ver "contaminada" pelo atual impasse no Congresso norte-americano. Além disso, o ícone da atitude anti-Brasil de dois anos atrás continua "na ativa": o senador republicano Chuck Grassley, de Iowa, que, apesar de não ser mais o presidente do Comitê de Finanças, ainda pode bloquear ou dificultar a renovação do programa. Em princípio, o SGP brasileiro não tem nada que ver com a Colômbia ou com temas "domésticos" da política comercial dos Estados Unidos. Na prática, no entanto, a realidade é bem outra.

Mário Marconini, diretor da Fiesp, é presidente do Conselho de Relações Internacionais da Fecomércio e professor associado da ESPM