Título: Preço da comida ameaça governos
Autor: Barba, Mariana Della; Chade, Jamil
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2008, Internacional, p. A16

Alta de alimentos gera protestos e instabilidade em mais de 30 países

O ciclone que no dia 3 atingiu Mianmar, deixando mais de 23 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados, causou uma outra tragédia da qual a população levará anos para se recuperar - a destruição da região mais produtiva do país, responsável por 65% do cultivo de arroz e por 80% da pesca, cuja escassez já causa aumento do preço desses produtos. Essa inflação ameaça causar a retomada dos violentos protestos do ano passado, provocados pela alta do arroz e reprimidos pela junta militar que governa o país há 46 anos.

Mianmar não é a única nação atingida pela mais grave crise alimentar mundial dos últimos 40 anos. A alta do preço dos alimentos impulsiona protestos violentos em pelo menos 36 países, causando instabilidade política e conflitos sociais.

Essa inflação é um fenômeno recente com o qual a comunidade internacional ainda não sabe como lidar. Ela é causada por uma combinação de fatores que inclui aumento do preço do petróleo, ampliação da demanda de grãos de países emergentes superpopulosos como China e Índia, mudanças climáticas e até uso da terra para a produção de biocombustíveis.

Para o economista peruano Maximo Torero, do International Food Policy Research Institute, com sede em Washington, um dos efeitos da inflação é a falta de acesso da população mais pobre aos alimentos. Para atenuar esse problema, uma das medidas de emergência é recorrer à ajuda humanitária internacional. ¿Se há mecanismos de mercado, como bancos e sistema financeiro, podem ser feitas transferências de dinheiro. Se não há, a solução é a transferência direta de comida¿, disse, por telefone, ao Estado.

A maioria dos casos de crise alimentar é pontual - provocada por guerras, tempestades ou secas, que reduzem a produção. Mas o cenário de hoje é de uma crise generalizada, que afeta, simultaneamente, países em diferentes continentes.

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, teme que a crise seja usada por opositores ou rebeldes em alguns países para derrubar governos ou minar processos de redemocratização. ¿Temos de ter cautela para lidar com esse problema¿, disse Ban ao Estado. ¿Por isso, estou pedindo que as tropas de paz da ONU fiquem atentas e garantam a alimentação das populações.¿

Não seria a primeira vez que a disputa por alimentos provocaria guerras ou golpes de Estado. Na Libéria, o então presidente William Tolbert foi assassinado em 1980 em um protesto contra a alta no preço do arroz.

Para a União Inter-Africana de Defesa dos Direitos Humanos, os governos que deveriam estar empenhados em garantir a democracia estão agora usando, contra famintos, a mesma tática de repressão de guerras civis. Para a ONU, há um retrocesso nas democracias da África - em 21 países do continente, a crise alimentar está se transformando numa questão de segurança.

De acordo com a ONU, quando a crise atinge pessoas que vive com menos de US$ 2 por dia, elas param de comprar carne e tiram os filhos da escola. Quem sobrevive com menos de US$ 1 corta vegetais e carnes e come só cereais. Os mais miseráveis, que ganham US$ 0,50 por dia, vendem o que têm (como a chapa de lata que serve como teto) para comprar comida.

¿Se na América Latina há 11,5 milhões de miseráveis, na África eles são 151 milhões¿, afirma Torero, dando a medida da tragédia africana. ¿A maioria dos países africanos não está preparada para lidar com o problema.¿

As previsões são pouco animadoras. ¿Não há no momento nenhuma razão para acreditarmos que o preço das commodities vai cair. Por isso, há séria possibilidade de os conflitos se espalharem, especialmente na África¿, diz a britânica Kirtana Chandrasekaran, da organização Friends of the Earth.

Na América, o principal foco de revolta contra a alta de preços surgiu no Haiti, que importa quase toda a comida que consome. Uma onda de saques e protestos deixou 5 mortos e 50 feridos no mês passado, causando a queda do premiê Edouard Alexis.

Na Ásia, a alta dos alimentos foi um dos fatores para que o presidente paquistanês, Pervez Musharraf, saísse derrotado nas eleições gerais de fevereiro. Muitos eleitores diziam que antes de se preocupar com o terrorismo tinham de pensar no que iam comer naquele dia.

A ajuda humanitária é apontada como um paliativo eficaz no curto prazo. O Programa Alimentar da ONU pediu aos doadores US$ 755 milhões a mais este ano para compensar o aumento no preço dos alimentos. Por enquanto, recebeu cerca de 60% desse valor.

A Agência Internacional de Desenvolvimento dos EUA, a maior doadora do programa da ONU, porém, cortou US$ 120 milhões de suas contribuições futuras, alegando falta de verbas. Corte de impostos para o setor alimentício e restrições às exportações são outras medidas imediatas.

Em longo prazo, os especialistas sugerem investimentos em programas sociais e na produção agrícola. No mês passado, o Banco Mundial anunciou que vai aumentar de US$ 450 milhões para US$ 800 milhões o total de empréstimos à África em 2009, justamente para incentivar os pequenos produtores e combater a inflação. Seguir esses conselhos pode ser a chance de muitos governos de escapar da guilhotina política.