Título: Diplomacia da generosidade
Autor: Barbosa, Rubens
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2008, Esaço Aberto, p. A2

A Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados realizou, na semana passada, audiência pública sobre as reivindicações do Paraguai em relação a Itaipu e sobre as conseqüências da eleição de Fernando Lugo para a América do Sul e para o Brasil. As reivindicações do Paraguai sobre Itaipu põem em questão a nova diplomacia da generosidade, definida pelo alto escalão do governo como central na atual política externa para a América do Sul.

Assim como na política econômica, existem traços positivos na política externa. As grandes linhas de ação foram mantidas: prioridade para o Mercosul, para os países da região e estreitamento das relações com grandes economias emergentes. Fez-se um esforço para ampliar a projeção externa e com isso foram obtidos alguns resultados: ampliação dos laços comerciais Sul-Sul, criação do G-20 e maior aproximação com a África e com o Oriente Médio, entre outros.

Ressalvados os avanços, várias linhas de atuação do Itamaraty, tal como em questões de política econômica, são objeto de críticas e restrições. As vulnerabilidades da política bilateral em relação aos vizinhos do entorno geográfico, a política de integração sul-americana e a estratégia de negociação comercial seguida nos últimos seis anos, concentrando os esforços diplomáticos unicamente nas negociações da Rodada Doha, são exemplos de áreas não consensuais.

A discussão objetiva dessas questões deve descartar as manifestações ufanistas, de um lado, e a crítica radical e apenas negativa, de outro.

Foi nesse contexto que me referi, na Comissão de Relações Exteriores, aos efeitos nem sempre positivos para o Brasil da política de generosidade adotada pelo Itamaraty. Note-se que se trata de elemento inédito nos anais da diplomacia mundial. Não me consta que haja países que a pratiquem ou sequer a proclamem, salvo retoricamente.

Quais os fundamentos dessa política?

A doutrina oficial reza que o Brasil deve ser generoso e solidário porque é maior e mais forte economicamente do que seus vizinhos (Paraguai e Bolívia), porque quer preservar a parceria estratégica com a Argentina e com a Venezuela ou porque hoje a solidariedade substituiu a rivalidade na região.

Adicionalmente, a generosidade parece fazer-se também presente por afinidades ideológicas e partidárias, acrescento eu.

Nessa linha, o Brasil tem perdoado dívidas (Bolívia), feito doações (Paraguai) e concessões importantes, como no caso da expropriação manu militari de duas refinarias da Petrobrás, com o descumprimento de tratados, acordos e contratos, sem qualquer protesto ou reação.

Não se questiona ser do interesse brasileiro que seus vizinhos cresçam, prosperem, se desenvolvam e fortaleçam seus regimes democráticos. O Brasil, como o maior país da região e com pretensões de liderança (na visão do governo), pode e deve ajudar seus vizinhos. O desenvolvimento de nossos vizinhos beneficiará o Brasil do ponto de vista político e econômico-comercial.

As ações políticas de solidariedade e de generosidade do governo brasileiro para favorecer os países do entorno geográfico, dentro desse contexto, devem, contudo, ter como limite o interesse nacional. Apesar de o governo afirmar que a solidariedade e a generosidade não são incompatíveis com o interesse nacional, isso nem sempre ocorre.

Afinidades ideológicas ou partidárias não podem justificar atitudes que se apresentem como generosas, se essas ações forem contra interesses concretos do Estado e do povo brasileiro.

A generosidade chegou a tal ponto que as reivindicações do presidente eleito do Paraguai foram respondidas de imediato. O governo brasileiro começou a negociar pelos jornais com o candidato eleito e, antes mesmo do início de negociações formais, já cedeu na questão do preço, contra a opinião técnica manifestada pelo ministro de Minas e Energia, pela Eletrobrás, pelo diretor de Itaipu e pelo presidente da Empresa de Planejamento Energético.

Não se trata - ninguém está pedindo isso - de impor medidas retaliatórias ou arrogantes na defesa de nossos interesses, quando outros países tomam medidas na defesa dos seus interesses e que afetam concretamente o Brasil.

O que se está pedindo é que nossos interesses sejam defendidos por meio da cooperação e da negociação e que venham antes das afinidades ideológicas ou partidárias, como foi feito na resposta do Itamaraty à Bolívia no tocante à construção de hidrelétrica no Rio Madeira.

Quais os resultados dessa diplomacia da generosidade?

Poucos foram os seus frutos. O Brasil passou a ter, na maioria dos casos, uma atitude reativa, como evidenciado nas propostas formuladas pela Venezuela (gasoduto, Banco do Sul, pacto militar para a região e Unasur) e pela Argentina (salvaguardas unilaterais contra produtos de exportação, veto à compra da cadeia de postos da Esso pela Petrobrás).

Muitos são os exemplos de que essa atitude não resultou em benefícios para a política externa quando estavam em jogo interesses reais. As candidaturas brasileiras a organismos internacionais foram rejeitadas pelos países da região e a pretensão brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU encontra forte resistência de nossos vizinhos. A Bolívia opõe-se à construção da hidrelétrica do Rio Madeira e o presidente eleito do Paraguai quer rever o Tratado de Itaipu, ameaçando até levar o caso ao Tribunal da Haia. A Argentina, depois de inúmeras concessões feitas pelo Brasil, inclusive a cessão de energia neste inverno, continua a impor medidas restritivas comerciais, ilegais não só no Mercosul, como também no Gatt, e se recusa a levantar a proibição de exportação de trigo para o Brasil.

Até onde nos levará a diplomacia da generosidade?

Rubens Barbosa, consultor de negócios, é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp