Título: O negócio da política
Autor: Fausto, Sergio
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/06/2008, Espaço Aberto, p. A2

Por que, mesmo antes de surgirem os indícios mais veementes, a maioria das pessoas informadas já presumia a culpa do deputado Paulinho da Força no esquema de corrupção desvendado pela Polícia Federal? Porque o padrão de atuação revelado é típico do modo pelo qual, com desenvoltura cada vez maior, as organizações sindicais e seus representantes se estruturam para capturar pedaços do aparelho estatal e fatias de recursos públicos.

Nesses esquemas pode ou não haver desvio de recursos para o enriquecimento pessoal (no geral, há). O que sempre está presente é o uso simultâneo do aparelho sindical como trampolim eleitoral e ferramenta de extração de vantagens junto aos órgãos do governo. Trata-se de um movimento duplo, que se reforça mutuamente, uma vez que a conquista do mandato parlamentar facilita o acesso aos cofres públicos, o que, por sua vez, fortalece a organização sindical e vice-versa.

Estudos recentes, como os da professora Maria Celina D¿Araújo e do professor Leôncio Martins Rodrigues, documentam o aumento da participação de sindicalistas entre os membros do Executivo e do Congresso, respectivamente. Em teoria, o ingresso de novos personagens na cena principal da vida política, combinado com a alternância no poder, da qual tivemos um belo exemplo em 2002, seria um sinal de vitalidade da democracia. As barreiras de classe estariam sendo superadas e o universo da representação de interesses se abrindo a quem antes dele não participava. Do governo ¿de poucos¿ estaríamos passando para o governo ¿de muitos¿.

Esse é o lado bom da história. O lado ruim é que a incorporação de sindicalistas tem significado não maior transparência no trato dos assuntos e recursos públicos, mas, ao contrário, a reiteração, sob novas formas, das piores tradições de apropriação privada e/ou corporativa do espaço da representação e dos recursos públicos no Brasil. Novos personagens, velhos vícios, o que põe em xeque os benefícios da democratização ¿quantitativa¿ da elite política.

O corporativismo sindical não é novidade no Brasil. Nem é exclusividade dos trabalhadores. Muito longe disso. A base institucional de poder sobre a qual se ergue a representação setorial do empresariado é a mesma. Para não falar no poder de fogo próprio que os empresários têm para fazer valer seus interesses, maior do que o dos trabalhadores, por razões óbvias.

As duas faces da estrutura corporativa nasceram sob as asas do Estado Novo, no final dos anos 1930. A novidade está no papel que a representação corporativa dos trabalhadores, ou melhor, da cúpula sindical, passou a ter. As cúpulas sindicais - sobretudo agora que parte do imposto sindical passará a fluir automaticamente para os cofres das centrais - jamais contaram com tantos recursos cativos (e sem fiscalização alguma, já que o presidente Lula vetou o artigo da lei que previa a necessidade de prestação de contas ao TCU). Jamais contaram com acesso à deliberação sobre recursos públicos tão vultosos (fundos de pensão e FAT, principalmente). E jamais tiveram tanto poder sobre os partidos. Comparem-se os casos do velho PTB, que subordinava sua máquina sindical aos interesses partidários mais amplos, com o caso do atual PDT, seu suposto herdeiro, tomado de assalto pelas forças sindicais.

A utilização de privilégios garantidos pelo Estado para acumular capital político e financeiro tem outros exemplos. As máquinas político-empresarial-religiosas de algumas denominações evangélicas, que alugam siglas partidárias e têm lugar de destaque na elite política atual, não poderiam ter sido construídas sem o acesso a uma das mais cobiçadas prebendas estatais: a doação, sob a mera formalidade da concessão, de licenças para operação de emissoras de televisão e rádio Brasil afora.

Não espanta que haja descrédito crescente em relação à política e aos políticos. Nesse quadro, haveria espaço para a representação política dos interesses mais difusos e universais da cidadania? A verdade é que a captura crescente do espaço público por corporações e interesses organizados se faz à custa do político comprometido com a representação dos interesses mais abrangentes da sociedade. Políticos assim são cada vez menos freqüentes. Animais em extinção, uma espécie da qual recentemente o Brasil perdeu duas figuras exemplares: Artur da Távola e Jefferson Péres.

A conseqüência é grave e pode agravar-se mais ainda. A gravidade está em que a desmoralização da vida pública, em geral, e da atividade parlamentar, em particular, faz com que delas fujam os jovens de maior talento e melhor formação moral. Os danos para a imagem e o funcionamento do Congresso são imensos. Em nosso sistema político, o presidente é uma figura singular, para bem ou para mal. A ele se admite dizer que ¿não sabia¿, diante de uma grave falha moral ou funcional de seus auxiliares. O mau comportamento de alguns parlamentares contamina toda a instituição, que já goza de má fama.

O problema não é só brasileiro. Em todas as pesquisas e em todos os países, a reputação do Congresso e dos parlamentares não é das melhores. Em vários há queixas e críticas quanto à deterioração da qualidade dos representantes no Legislativo. Onde as tradições e instituições são mais sólidas, os riscos para a democracia são menores. Onde aquelas são mais frágeis, estes são maiores. Uma coisa é certa: não pode haver vida longa para a democracia onde o Congresso e os parlamentares não desfrutem de uma reserva razoável de prestígio. No Brasil, para recuperá-la é preciso refazer os elos perdidos ou jamais estabelecidos entre os representantes e os representados: reforma do sistema eleitoral. Mas também reforma do Estado, para proteger os cofres públicos dos negócios da política.

Sergio Fausto, cientista político, é coordenador de estudos e debates do Instituto Fernando Henrique Cardoso, editor da revista Interesse Nacional e membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional da USP (Gacint/USP) E-mail: sfausto40@hotmail.com