Título: Caso exibe confusão entre Poderes
Autor: Santanna, Lourival
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/07/2008, Nacional, p. A12

Conflitos entre governo, Judiciário e PF mostram inconsistências das instituições brasileiras, dizem analistas

Os conflitos entre o governo, a Justiça e a polícia - e no interior de cada um deles - deflagrados pela prisão do banqueiro Daniel Dantas exibem, de forma teatral, as inconsistências das instituições brasileiras. Poderes, órgãos e autoridades que não cumprem a contento suas obrigações avançam sobre as atribuições dos outros. A confusão embaralha o certo e o errado, no momento em que se exige que a Justiça seja igual para todos e acabe a impunidade.

"O problema vem de longe", diz Roberto Romano, especialista em ética. Amedrontado pela fragmentação entre muitos países pequenos ocorrida nos vizinhos hispânicos, o Estado brasileiro é centralizador desde seu nascimento. Esse centralismo atravessou todos os regimes, sempre com uma peculiaridade: para se manter, o governo central, que controla 70% das receitas tributárias, troca verbas e cargos por apoio político dos chefes locais. Essa troca se dá no Congresso, razão pela qual ele continuou aberto durante a ditadura, à diferença de outros países.

Esse desenho desloca cada Poder de sua função original. O Legislativo não legisla, porque está ocupado com "a intermediação entre os governos central e locais", observa Romano. Como a Constituição não é regulamentada em leis e as leis não são aperfeiçoadas, o Judiciário avança da interpretação para a criação de normas. O cientista político Fábio Wanderley Reis cita dois exemplos recentes desse "ativismo legislativo" das cortes superiores: a imposição da fidelidade partidária (com prazo e tudo), que "não correspondia à intenção do legislador", e a "camisa-de-força" da verticalização das candidaturas, que não existia em lei. Para Reis, esses avanços do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral geram uma "explosão de incerteza legal".

Por meio das liminares, o Judiciário governa, ao determinar quais decisões do Executivo serão postas em prática e quais serão engavetadas. Em qualquer país, as cortes supremas dão a palavra final sobre as decisões do Legislativo e do Executivo, com base na Constituição. Mas, quando os outros Poderes são disfuncionais, as cortes se tornam invasivas.

O Poder Executivo, por sua vez, premido por "eleições plebiscitárias" a cada quatro anos, "é muito arbitrário e não tem paciência de seguir os ritos do Legislativo e do Judiciário", descreve Romano. Daí as medidas provisórias, pelas quais o governo legisla; e as ações espetaculares da Polícia Federal, pelas quais "tenta impor fatos consumados ao Judiciário". É a Justiça que manda prender, mas é a polícia que condena simbolicamente os seus presos, ao expô-los algemados, entrando no camburão.

Esse embaralhamento é grave. "A determinação das competências recíprocas é a essência de cada Poder e da harmonia entre os três", define Romano. "O Estado é o representante da soberania do povo, mas os Poderes só são soberanos em conjunto. Não existe soberania de cada Poder separado. Sem a harmonia, cada Poder usurpa a soberania dos outros dois e, portanto, do povo."

Não é por falta de definição teórica de tarefas que instituições e órgãos se engalfinham no mundo real. "As atribuições estão relativamente claras", avalia Maria Teresa Sadek, que estuda a polícia, o Ministério Público (MP) e a Justiça. "O que ficou mais visível é que essas instituições têm conflitos internos e estão muito divididas."

O delegado Protógenes Queiroz, da Polícia Federal, acusou a direção do órgão de "obstruir" as investigações, e foi acusado de tê-las "escondido" da chefia; o juiz Fausto De Sanctis foi criticado pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, que por duas vezes derrubou suas decisões, e ambos foram alvo de manifestos de desagravo, das categorias dos juízes e dos advogados, respectivamente . "Não é bom o conflito de natureza política, como não é bom o destempero verbal", diz Maria Teresa.

Tanto a Justiça quanto o MP (a partir da Constituição de 1988) usufruem de independência. Os chefes dos MPs federal e estaduais são nomeados pelo presidente e pelos governadores, respectivamente, mas sua ascendência sobre os procuradores e promotores é apenas administrativa, diz a especialista.

Já a Polícia Federal está subordinada ao Ministério da Justiça. A sua atual politização, no entanto, coincide com o auge de sua autonomia, e é provável que as duas coisas estejam ligadas: a relativa liberdade de atuação permite aos delegados filiar-se a grupos rivais, dentro e fora do governo.

"O problema não é que não estejam bem demarcadas as instituições", analisa o jurista Célio Borja. "Não há um conflito de Poderes, mas uma explosão de temperamentos. Deixem as instituições em paz."

Demarcadas, mas disfuncionais. "Quando as instituições não estão funcionando, a vontade do operador se torna mais importante que elas", explica Romano. "Não é a máquina do Estado, mas o ego que opera."