Título: Democracia argentina ainda é frágil, 25 anos após fim da ditadura
Autor: Palacios, Ariel
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2008, Internacional, p. A20

País já está no nono presidente e governo de Cristina Kirchner começa a sofrer efeitos do hiperpresidencialismo

A Argentina celebra no segundo semestre os 25 anos da volta da democracia. Após sete anos de uma sanguinária ditadura militar, em outubro de 1983 os argentinos foram às urnas eleger um presidente civil, Raúl Alfonsín, que tomou posse em dezembro daquele ano com o slogan: ¿Com a democracia, alimenta-se e educa-se.¿ Mas, depois de um quarto de século, a democracia argentina, embora seja a veterana da região - o Brasil e o Uruguai retornaram à democracia em 1985; o Paraguai em 1989 e o Chile em 1990 -, é uma das mais débeis.

De lá para cá, o país teve oito presidentes e passou por várias rebeliões militares e populares. Cristina Kirchner é a nona ocupante da Casa Rosada. A média de rotatividade é implacável: desde 1983 o país teve um presidente a cada 2,7 anos.

Um dos sinais da debilidade institucional da Argentina ficou evidente há menos de duas semanas, quando Cristina enfrentava o momento mais complicado do confronto de mais de cem dias com o setor ruralista. Na ocasião, uma pesquisa da consultoria I-Barômetro indicou que uma proporção fora do normal de argentinos (34,4%) era a favor de que - por algum mecanismo - fossem convocadas eleições presidenciais antecipadas para mudar o governo de Cristina, que está há apenas sete meses no poder.

REBELIÕES POPULARES

Desde 1983, somente dois presidentes completaram seus mandatos. Outros quatro tiveram de encurtar seus governos por rebeliões populares, e houve dois interinos que ficaram poucos dias no posto. ¿Ao contrário da Argentina, no Chile e no Uruguai não houve nenhum caso similar. Nem no Brasil, pois a destituição de Fernando Collor de Mello ocorreu por decisão do Congresso¿, afirmou o analista político Rosendo Fraga.

Segundo ele, a Argentina chegou a superar em número os chamados ¿golpes da rua¿ levados adiante pelos equatorianos e bolivianos. Esse tipo de protesto popular provocou a queda de três presidentes no Equador e dois na Bolívia.

Desde março, Cristina foi alvo de panelaços nas grandes cidades e marchas de protesto nas áreas agrícolas. Sua popularidade caiu de 56% em janeiro para 20% em junho. Furiosa e qualificando os setores que protestavam de golpistas, Cristina reagiu colocando seus próprios manifestantes nas ruas. O Parlamento nada fez durante três meses de conflito, e só foi acionado depois de cem dias de crise.

¿Em comparação com o passado, a Argentina vive uma debilidade institucional, embora a democracia não esteja em risco. Os presidentes podem renunciar, mas o sistema democrático não se alterará¿, afirmou Fraga.

A hipótese de um golpe militar, solução freqüente durante seis décadas, hoje em dia seria impraticável, já que as sucateadas Forças Armadas não têm interesse em tomar o poder, nem condições para isso. ¿É algo impensável. Civis e militares não especulam sobre isso¿, avalia o historiador e deputado José García Hamilton. Analistas lembram que nem mesmo nos piores dias da crise de 2001, quando multidões saqueavam supermercados e grupos depredavam bancos, houve algum apelo para uma intervenção militar.

TRÊS PRAGAS

O socialista Hermes Binner, governador da Província de Santa Fé, uma das mais ricas do país, sustenta que a Argentina enfrenta três pragas: o enfraquecimento do federalismo (dando lugar a um governo central cada vez mais forte), a pouca independência dos poderes e o ¿hiperpresidencialismo¿.

Fraga sustenta que o hiperpresidencialismo dentro da cultura latino-americana - caracterizada por personalidades políticas fortes e instituições fracas para contê-las - é uma faca de dois gumes. Segundo ele, nesse modelo, ¿o presidente é tudo e, quando fica fraco, o sistema político costuma desmoronar¿.

Cristina já sofre alguns desses sintomas, afirmam analistas. Enfraquecida pela crise ruralista, começou a enfrentar uma fuga de deputados outrora aliados. Vários governadores também começam a se afastar dela. O próprio Binner, ex-aliado de Cristina, afirmou há poucos dias: ¿Essa forma de governar está acabando.¿

Para complicar a situação, a percepção da população é que o verdadeiro governante não é Cristina, mas seu marido, o influente ex-presidente Néstor Kirchner. Ambos são criticados por seu autoritarismo, pelo abuso no uso de decretos e pela influência sobre o Judiciário. Além disso, ministros suspeitos de estar envolvidos em escândalos de corrupção permanecem em seus cargos.

ESTATÍSTICAS

De quebra, o governo é acusado de alterar as estatísticas. O Instituto de Estatísticas e Censos (Indec) perdeu toda a credibilidade, algo que não ocorreu nem mesmo nos corruptos tempos da ditadura militar. O Indec é suspeito de maquiar os índices de inflação e pobreza. A inflação real, segundo os economistas, seria três vezes maior do que a oficial. A pobreza seria pelo menos 10% maior.

A governabilidade argentina é uma das piores, segundo o ranking internacional preparado pelo Banco Mundial.

Em uma escala de 1 a 100 pontos criada para avaliar a qualidade das políticas regulatórias dos países, a Argentina obteve apenas 22 pontos (o Brasil conta com 53 pontos). O resultado da avaliação tornou a Argentina um espantalho para os negócios. No ranking elaborado pelo Banco Mundial, a Argentina está pior que o país africano São Tomé e Príncipe e levemente melhor que Bangladesh, na Ásia.

Em matéria de controle de corrupção, a Argentina conquistou apenas 43 pontos na avaliação, muito inferior ao Chile, que obteve 90 pontos, e ao Uruguai (81 pontos). Também está abaixo do Brasil, que conquistou 52 pontos.