Título: Mendes ganha apoio de Lula para mudar lei
Autor: Nossa, Leonencio; Recondo, Felipe
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/07/2008, Nacional, p. A7

Apesar dos atritos, presidente do STF e Tarso negam divergências

Um dia depois de pregar a necessidade de o País ter nova legislação para controlar abusos das autoridades, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, ganhou ontem o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que Executivo, Judiciário e Legislativo revejam a lei em vigor, de 1965, e proponham mudanças. O assunto virou tarefa de governo, e não apenas do STF.

O encontro, no Planalto, no início da noite de ontem, e que durou uma hora e meia, foi articulado pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim - o ministro da Justiça, Tarso Genro, também esteve presente. Antes, pela manhã, Mendes já havia conversado com o presidente do Senado, Garibaldi Alves (PMDB-RN). Na semana passada, almoçara com o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), presidente da Câmara. Ficou acertado que serão montados grupos de trabalho para tratar dos três temas principais: grampos, abuso de poder (algemas, acesso de advogados aos processos, prisões temporária e preventiva etc) e defensorias públicas.

Ao final do encontro, Gilmar e Tarso, lado a lado - sinalizando entendimento político depois de uma semana de divergências sobre a Operação Satiagraha da Polícia Federal -, deram uma entrevista e anunciaram "um pacto republicano" para mudar a lei do controle de abusos da autoridade.

A expressão foi uma espécie de homenagem ao trabalho de Jobim para pacificar as relações entre os Poderes porque, quando era presidente do STF (2004-2006), lançou a idéia de "um pacto pelo Judiciário republicano".

"Hoje temos uma capacidade quase universal de praticar abuso de autoridade, na Receita Federal, no âmbito da burocracia, da magistratura, do Ministério Público", afirmou Mendes, que lançou a proposta de mudança da legislação anteontem, em entrevista na sede do Estado. "Esse abuso de autoridade, muitas vezes, o Estado está sendo onerado e a sociedade também com ações cíveis de responsabilidade civil", acrescentou, lembrando o direito de as pessoas pedirem indenização ao Estado por esses abusos.

"Iniciamos agora um novo ciclo, menos de debate público e mais do discurso voltado para o trabalho e a proposta", disse Tarso ao final da reunião. Mendes aproveitou a presença do colega da Justiça para dizer que a imprensa não compreendeu "bem" termos técnicos usados por ele em declarações dadas anteontem. "Quando eu disse que não era atribuição do ministro da Justiça (falar sobre as questões judiciais envolvendo a operação da PF) eu não disse que o ministro era incompetente para se pronunciar sobre o tema. Eu disse que julgar o inquérito não estava na sua esfera, nunca houve confronto de entendimento e nós inclusive discutimos os abusos." Nas últimas semanas, Tarso e Mendes vinham trocando farpas sobre vazamentos de dados, grampos e uso de algemas.

Na reunião de ontem, Lula considerou como um dos exemplos recentes de abuso de autoridade a operação da PF na casa do empresário Eike Batista, sexta-feira passada.

Uma das propostas que Mendes encampa para controlar os abusos (leia quadro ao lado) deve acelerar os processos na Justiça contra agentes públicos, como policiais federais, suspeitos de abuso. A idéia é tirar do Ministério Público o poder exclusivo de acionar a Justiça e denunciar os autores de excessos, como previsto na legislação atual de abuso de autoridade, de dezembro de 1965, feita em pleno regime militar (1964-1985).

Essa alteração na lei permitirá que qualquer cidadão acione a Justiça, sem necessitar do aval do Ministério Público. Com isso, o presidente do Supremo tenta evitar que procuradores, que trabalham em conjunto com a Polícia Federal nas operações que deflagra, possam arquivar casos de abuso contra investigados ou autoridades atingidas, por exemplo, pelo vazamento a conta-gotas de informações sigilosas.

Em casos notórios, de acordo com críticas de Gilmar Mendes, o Ministério Público esquece ou engaveta representações abertas contra acusados de abusos de autoridade porque a Procuradoria-Geral da República se sente "co-autora, cúmplice".

O próprio Mendes se disse alvo de vazamentos "descontextualizados" pela PF. Na Operação Navalha, que desbaratou fraudes em licitações, informações de investigadores apontavam Gilmar Mendes como beneficiário. Depois descobriu-se que era um homônimo.

O que diz a legislação e o que pode mudar

É ABUSO DE AUTORIDADE

Atentar contra a liberdade de locomoção de uma pessoa

Atentar contra a inviolabilidade do domicílio

Violar o sigilo da correspondência

Atentar contra a liberdade de consciência, de crença ou ao exercício do culto religioso

Violar direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto

Atentar contra a incolumidade física do indivíduo

Violar os direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional

Ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder

Desrespeitar a integridade física e moral dos condenados ou presos provisórios

Submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei

Deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa

Deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada

O ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal

Prolongar a execução de prisão temporária, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade

Constranger alguém depois de ser preso

O QUE FALTA À LEI

Não há regras específicas para punir agentes públicos que divulgam informações sobre investigações sigilosas

A legislação não prevê a responsabilização de quem "vaza" dados de apurações sigilosas fora de contexto apenas para constranger pessoas públicas

A lei não trata detalhadamente, também, da exposição de investigados durante as operações da PF

O texto não cuida de decretos de prisão preventiva e temporária, que depois são julgados ilegais pelo Supremo Tribunal Federal (STF)

Não há punição prevista para o policial que usa indevidamente algemas para prender os investigados

LEI DOS GRAMPOS

Hoje - Permite a escuta telefônica por 15 dias, depois de autorizada pelo Judiciário. O entendimento é que esse prazo pode ser renovado indefinidamente, quantas vezes a polícia pedir e o juiz aceitar

Mudanças em estudo - Propostas no Congresso ampliam o prazo de escuta de 15 para 30 dias, mas renovável por uma única vez. Outra diz que o prazo será ampliado para 60 dias, prorrogável por mais 60, também uma vez só. Algumas criminalizam o vazamento do conteúdo dos grampos e pedem que o Ministério Público seja ouvido antes de o juiz autorizá-lo ou não

ALGEMAS E "ESPETACULARIZAÇÃO"

Congresso, Ministério da Justiça e CNJ estudam definir com clareza quando e como a polícia deve prender com algemas. Em tese, se o preso não oferecer resistência, a polícia não deve algemá-lo. A mídia pode ser informada sobre a operação, mas não deve ter presença ativa na atuação dos policiais

ADVOGADOS: ACESSO AO INQUÉRITO

O CNJ analisa e quer rever a questão da proibição de acesso dos advogados aos processos que teoricamente justificam a prisão dos clientes. Para alguns ministros do STF, é inconcebível que réus não saibam de que estão sendo acusados

REPRESENTAÇÕES

Para o presidente do STF, Gilmar Mendes, o Ministério Público não pode mais intermediar a representação dos cidadãos que se sintam prejudicados pelas ações policiais, do Judiciário e do Ministério Público. A maioria das queixas, quando envolvem procuradores, não é encaminhada pelo Ministério Público

PRISÕES TEMPORÁRIA E PREVENTIVA

CNJ faz levantamento sobre quantidade e qualidade das prisões, para mapear problemas detectados pelos juízes das instâncias superiores e que levaram a revogações. O conselho quer normatizar quando deve haver prisão para aprofundar apuração