Título: A Rodada Doha não morreu
Autor: Oliveira, Gesner
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/08/2008, Economia, p. B2

O alardeado fiasco da reunião ministerial da OMC em Genebra não representa o fim da Rodada Doha. Desde que foi criada, sua morte foi anunciada diversas vezes. Doha é um gato de muitas vidas.

Em 2003, por exemplo, as discussões foram subitamente interrompidas com o fracasso da conferência ministerial de Cancún. Em 2005, na reunião ministerial de Hong Kong, os países concordaram em eliminar os subsídios à exportação agrícola até 2013, mas não chegaram a um acordo sobre a redução de tarifas e subsídios domésticos. Em 2006, ocorreu um impasse na reunião entre Austrália, Brasil, EUA, Índia, Japão e União Européia (UE), levando à suspensão sine die das negociações. Elas seriam retomadas em janeiro de 2007, com a cúpula de Davos. Nada impede que, uma vez passada a ressaca das últimas negociações e as eleições nos EUA, o diálogo não possa ser reaberto em novas bases.

Não foi a Rodada Doha que morreu. É o formato de negociação na OMC que está superado. Desde a realização da primeira negociação multilateral no âmbito do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), em 1947, o número de países membro da OMC cresceu de 23 para os atuais 153. Dada a diversidade de interesses em jogo e o número crescente de membros, os custos de coordenação para a obtenção do consenso tornaram-se exorbitantes. Some-se a isso a dificuldade crônica das instâncias multilaterais se adaptarem a uma nova ordem econômica mundial marcada pela heterogeneidade e maior peso dos países emergentes. Esse reconhecimento pressupõe uma redução de expectativas quanto ao nível de ambição dos acordos a serem discutidos. A negociação comercial, nos próximos anos, aponta para acordos menos abrangentes e mais freqüentes. Em vez de variações estruturais no regime de comércio, haverá um continuum de negociações e avanços incrementais intercalados com recuos temporários. Tais movimentos não devem comprometer uma tendência ao aumento da parcela dos fluxos comerciais no comércio mundial.

Diante do novo impasse nas recentes negociações, o cenário mais provável é de retomada em 2009, mas com um escopo mais modesto. Continuará em pauta a limitação dos subsídios agrícolas que terá de ser mais diretamente vinculada ao ciclo de preços das commodities. Um acordo multilateral que reduzisse substancialmente o protecionismo agrícola na UE e nos EUA implicaria em aumento do acesso a mercados para carnes e etanol, beneficiando diretamente o agronegócio brasileiro.

Assim, o fracasso das negociações em Genebra não justifica revisão radical nas projeções para as contas externas brasileiras no curto prazo. Primeiro porque a retomada das negociações poderá ocorrer num prazo inferior a um ano, ainda que em novas bases e com um escopo mais modesto. Segundo porque as tratativas bilaterais e plurilaterais devem ser intensificadas independentemente dos cenários para a Rodada Doha. Por fim, os desdobramentos de um acordo multilateral, em qualquer circunstância, demoram a repercutir nos fluxos comerciais.

*Gesner Oliveira, ex-presidente do Cade, é presidente da Sabesp. Colaboraram Lucas Ferraz e Fernanda Machiaveli